terça-feira, 29 de julho de 2014

Declaração de amor à minha Serra Negra


Mais uma vez venho recordar a minha saída de sua convivência.

Olhando na folhinha, vi que já se passaram cinquenta anos de nossa separação e, com muitas saudades recordo-me de você e das minhas andanças depois que te deixei. Muita coisa mudou na minha vida. Novos conhecimentos, novos horizontes, cidades mais cheias de novidades; colégios; teatros; novos divertimentos; gente nova para conhecer;  igrejas e ruas tumultuadas por gente desconhecida. Mas não me sai do pensamento aquela que jamais eu pensei em deixar um dia, em mudar-me de vez.

Um dia voltaremos. – dizia meu marido, que era professor e precisou trabalhar fora da nossa querida cidade serrana. Ele também ficou pertencendo à cidade, pelos anos ali vividos, pelo amor ao lugar e pela amizade pelas pessoas de lá. Trabalhou muito no jornal “O Serrano” como redator e colaborador. E, era muito estimado pelos diretores, os Lombardi e, mais tarde, o Sr. Romualdo Canhoni e seus filhos, de quem ficou muito amigo.

Nossos seis filhos nascidos nessa cidade, de amor e carinho pelos que se fazem estimar e trabalham para isso, sempre estão voltando a passeio e recordando o tempo que passaram na minha querida velhinha, hoje centenária. Um deles ficou ali  "plantado" junto a meu pai, Manoel Carlos de Toledo, o Nhozinho, como era conhecido, que também foi Serranegrense de alma e de coração.

Por isso tudo, minha querida velhinha, venho hoje e sempre virei, vez ou outra, recordar-me com saudades os dias vividos com você. Jamais sairá da minha lembrança o teu céu, sempre azul, as noites enluaradas, da serra gigante que ladeia o horizonte e das ruas. Da gente amiga e altaneira na tarefa de viver contribuindo para o seu crescimento e bem estar dos visitantes e amigos forasteiros.

Aqui fica, como sempre, a minha gratidão pelos benefícios alcançados, nos dias passados com você.

FIM

domingo, 27 de julho de 2014

Meus 15 anos! Que maravilha!!!

1920

Eu gostava de tudo e de todos. Meus pais, minha avó, minhas tias e tios, primos, amigos, minhas amigas, eram mais de uma dúzia e muito legais.  Naquele tempo não se falava gíria, quando muito uma ou duas palavras como baita (quando queria dizer grande) puxa vida (exclamação comum) tirar linha (flerte, namorico, passar tempo, rabicho) etc.

Eu, como minhas amigas, tinha muita amizade com os rapazes todos conhecidos das famílias amigas. Eu não namorava nenhum, pois gostava de trocar ideias e achava alguns de inteligência tacanha, eu não admitia gente sem cultura, moço que não soubesse trocar ideias, dialogar com assunto pelo menos agradáveis, sem troçar, sem brincadeiras sem graça, sem cultura alguma. Aqueles que não conheciam livros estrangeiros nem a nossa literatura, ou algum livro, jornais, revistas, nada, nada, nada. Havia famílias com filhos preparados para a vida, mas cultura mesmo era pouca.

Quando, aos quinze anos, conheci Hildebrando, foi um sucesso literário para mim. Ele conhecia tudo, poesias, livros de literatura, romances e tornou-se amigo do meu tio Genu, dos Campos Vergal e dos Oliveiras que eram também agradáveis e inteligentes, além de muitos outros, que se tornaram amigos.

Era uma roda agradável a nossa, a noite, no jardim. Minhas amigas não gostavam muito de parar para conversar, acontece que elas tinham namorado e eu ia segurar vela para elas, só que quem tinha fama de namoradeira era eu. A Maria Luiza namorava o Rodolfo, Constantino; a Durvalina com o Angelino. Chorava e gemia quando ele ia para o cinema pois tocava na orquestra. Naquele tempo era a orquestra que acompanhava os filmes, na overture (a abertura) antes da cortina subir para começar o filme. Mas dava gosto ver o Leão de Ouro e outras histórias, e também como charadas e perguntas. Era uma sessão para que todos participassem e colaborarem. Aos nove anos eu enviava para a revista Tico-Tico, diversos trabalhos escritos, versos e charadas. Eu lia muito nesse época e também gostava de escrever composições e redações.

quarta-feira, 16 de julho de 2014

Orgulho em Pauta


Crônica publicada no jornal "O Serrano"– em 18.11.84

Tenho um orgulho que confesso: o de pertencer à família de jornalistas. O avô do meu saudoso esposo Hildebrando Siqueira, de nome Manoel Sartunino Seixas, era professor e jornalista em Pindamonhangaba e Campinas; Hildebrando também foi jornalista desde moço, em Campinas, no jornal “A Gazeta” e, mais tarde, em Serra Negra, minha querida velhinha e centenária, no jornal “O Serrano”. Desde quando o semanário pertencia aos irmãos Lombardi e, mais tarde, a Romualdo Cagnoni e ao Nenê, a quem o Hildebrando tinha muito carinho. Em Amparo novamente com os Lombardi, no jornal “O Comércio”, do qual Hildebrando foi redator e colaborador. Em Campinas, onde passou a morar, continuou escrevendo e foi redator do “Correio Popular e colaborador do “Defesa”. Hildebrando tinha verdadeira paixão pelo jornalismo, mais do que lecionar.

O nosso filho Francisco Isolino também é jornalista e, como o pai, gosta do cheiro das oficinas gráficas e da tinta dos jornais. Para ele, ser jornalista é uma religião. É um chamamento de sangue. Meu tio Ezeqias Marques gostava também de poesias, como sua filha Eronice que herdou do pai a sensibilidade poética.

Quando menina também visitei as oficinas do jornal “O Serrano”, no tempo dos irmãos Lombardi. Lá eu ia com meu saudoso pai levar material da Prefeitura para publicação.
Fiquei realizada e feliz quando vi, pela primeira vez, meu nome assinando um trabalho feito na escola, com Romeu de Campos Vergal, em 1915. Lá se vão sessenta e nove anos.
 “O Serrano”, ao qual quero abrir meu coração e minha saudade para felicitá-lo pelos seus bem vividos 77 anos de vida e circulação, faz-me agora muito grata ao ver acolhidas em suas colunas minhas poesia e escritos de minha terra e da minha gente.

terça-feira, 1 de julho de 2014

Jagunço


O professor Roberto ia viajar com a família e pediu-me para tomar conta do seu cão de estimação, um “Bulldog”, que o acompanhava há muitos anos. Iam demorar um mês, mais ou menos, durante as férias. Eu me encarreguei de tomar conta do animal e o Nelson, empregado do professor, levou o cachorro, chamado Jagunço, para minha casa, que ficava no fim da Rua José Bonifácio. O quintal era grande, um verdadeiro pomar e alí o cão podia correr à vontade.

Com as crianças, meus irmãos e primos ele se divertia a valer, correndo pelo quintal e acho que não estranhou e nem sentiu a falta dos donos. Comia e dormia perto do meu quarto, embaixo de uma mesa pois, de receio que escapasse e fugisse para a rua, não o deixava dormir fora no quintal.

Passado o tempo das férias, o Prof. Roberto voltou e mandou o Nelson buscar o cachorro, o Jagunço, que não quis acompanhar o menino, nem saiu do lugar onde estava . O Nelson prendeu na coleira de corrente uma cordinha para puxá-lo, mas o cachorro firmou corpo e não arredava as patas do lugar. Quando ví que o cão ia se machucar com o esforço do menino, me propus a levá-lo embora.

Chamei-o: “Jagunço, vamos passear, venha...”
Ele levantou-se de imediato e acompanhou-me sem mesmo precisar da corrente.
Chegando na casa do Prof. Roberto, ele e sua mulher Nina, vieram nos receber na porta. Eu não ia entrar, mas fui obrigada, pois o Jagunço não me deixava ir embora e quis mesmo me acompanhar de volta. Entrei, levei o cão para o quintal e a porta foi fechada. Eu nem me despedi do Jagunço, pois estive a ponto de chorar de pena dele.
Agradeceram a hospedagem que dediquei ao cão e fui para casa.

Lembrava-me todos os dias do Jagunço e, as crianças também sentiram falta.
Passados uns mês, mais ou menos, uma tarde apareceu o Nelson, pedindo para que eu fosse ver o Jagunço que não comia há dias e estava muito doente.

Chegando perto, levada pelo professor e sua mulher, vi um cachorro magro, feio, estirado num pano no rancho do quintal, era o Jagunço.
Quanto falei com ele, acariciei sua cabeça, ele quis se levantar, abriu os olhos, abanou a cauda e... morreu!

“Os cães também têm sentimento de amizade” – disse o professor, como os olhos cheios de lágrimas.

Eu nem me despedi, saí correndo...

domingo, 29 de junho de 2014

Carta do Sr. Francisco Patrício

Sr. Francisco Patrício nasceu em 20 de março de 1911, na estância de Serra Negra, onde viveu com seus pais, José Pires da Silva Patrício e Gertrudes Oralinda Patrício.

Francisco Patrício - história


sexta-feira, 27 de junho de 2014

Caso inusitado ocorrido na pacata cidade


Foi um crime bárbaro, pela sua frieza. Motivado por ciúme, ele ocorreu na nossa cidade no ano de 1918. Serra Negra sempre ordeira, com seus moradores, gente pacata e amiga, assustou-se com tamanha crueldade, praticada em uma manhã de sol, em uma das ruas da sonolenta população.

Foi o Lazinho, um pedreiro, que alucinado pela paixão por Amélia, filha do portador da Estação da Mogiana, alcançou-a quando ia para o trabalho de costureira, na rua Rio Branco e, assassinou-a com uma facada no coração. A moça não teve tempo de reagir, nem mesmo correr. Ele apenas gritou por seu nome e feriu-a de imediato, sem que a vítima tivesse qualquer reação. Ela, uma linda mocinha, muito estimada pelos amigos era única filha do casal.

A cidade se abalou. E, naturalmente ,acudiram a família, consolando no que foi possível. Ao enterro, no cemitério local, foi grande o número de amigos e parentes. O operário assassino foi preso e depois de julgado, ficou muitos anos na cadeia local. Depois de solto, voltou a trabalhar. Mais tarde, depois de muitos anos, suicidou-se com um tiro no ouvido. Ficou sua velha mãe, que lamentava ter um filho que era muito bom, mas por amor e também por remorso se matou.

A Rua do Sapo


Recordações das passagens pelas ruas da minha cidade que tenho.
Havia ruas que eu tinha medo de passar, como a Rua do Sapo.

Essa rua ficava no final da cidade, na saída para Lindóia. Quando mamãe precisava falar com uma lavadeira ou uma cozinheira que morava por ali, era um verdadeiro sacrifício ir para aquelas bandas.
Os batráquios saiam dos esgotos e, a rua, permanentemente molhada, atraia os sapos e as minhocas para a alegria dos pescadores.

Pela rua Catorze de Julho, no centro da Luz Elétrica, que por muitos anos esteve localizado embaixo da Prefeitura, passei muitas vezes a cavalo para ir para a Escola no Bairro das Três Barras, com a professora Arminda Brusquini, que era a professora  estadual no mesmo lugar. As estradas eram de terra, assim como as outras ruas da cidade e quando chovia ficavam uma lama lisa como sabão.

Era divertido para muitos fumantes colocar um cigarro na boca de um sapo enorme que ali permanecia todas as noites para saborear bichinhos, grilos, baratas e mariposas que ali apareciam. O batráquio parecia gostar de ficar com o cigarro na boca, tirando suas fumaças de vez em quando. O Benedito, o Nora e o Lola eram os que mais se divertiam com essa brincadeira. No jardim, o jardineiro Chico Martins tinha muito cuidado para que as crianças não maltratassem os sapos, pois eles é que limpavam os canteiros dos bichinhos maléficos para as plantas, as lindas roseiras cultivadas por ele com muito carinho.


sexta-feira, 20 de junho de 2014

A Festa de Santa Cruz




O passatempo no sítio, onde lecionei durante dois anos era, às tardes, sentar-me debaixo das frondosas árvores no pasto, onde havia uma brisa fresca que deixava a gente ficar à vontade, depois de um dia cheio de calor. Ali, a gente lia, fazia alguns versos que eram guardados ou rasgados.
Eu sempre gostei de escrever e, achava falta, na correspondência de casa, jornais, revistas e mesmo cartas de Hildebrando, que quando eu chegava em casa, lá estavam a me esperar. Ele sabia que aos sábados eu estava em casa e, por isso, enviava nos dias que não ia também.

Ele trabalhava na revista “Onda” em Campinas e no Jornal Gazeta de Campinas. Escrevia crônicas e redigia o jornal juntamente com o Benedito Cavalcanti e outros. Nesse tempo, ele já conhecia o Zeca Mendes e o Cesar Otaviano que era cantor. O Chico Hadad e mais outros colegas de jornalismo, Aristides Monteiro, Honório de Sillos e, um outro poeta que era de Minas e também o de Capivari que trocavam correspondência – mais tarde morreu tuberculoso, não chegando a se encontrarem.
Hildebrando era também da turma futurista de Mario de Andrade, Osvald de Andrade, Tarsila do Amaral, Álvaro Moreyra e sua mulher; e sempre dava notícias das reuniões das quais tomava parte.
Eu ficava a ouvi-lo entusiasmada com as novas que acontecia. E do movimento dos poetas entre eles: Menotti Del Picchia, que fez o seu autorretrato, oferecendo a Hildebrando, que ficou radiante com a oferta.

No sítio, a minha distração era ouvir os passarinhos, tratar de galinhas com a dona da casa e, ir nos dias que era tradicional de rezas de Santa Cruz, de Sant’Ana, dia três de maio e 26 de junho, costurar para as crianças da casa e bordar.

Fomos, numa tarde muito bonita, em turma, para um sítio perto, mais perto de Amparo que de Serra Negra e, lá, passamos umas horas ouvindo os violeiros tocarem e cantarem, fazendo desafio uns para os outros e oferecendo também versos às moças. Eram de Itapira, os tocadores irmãos Serra. A mim dedicaram uns versos que me encabularam, pois diziam que eu estava triste, talvez com saudades de alguém que estava distante, mas eu acho que eu estava era cansada, pois andamos a pé um estirão de estradas e eu já estava pensando na volta, no escuro da noite. Eu sem traquejo de andar no caminho, que pela primeira vez andava e, não conhecia direito. Foi o que aconteceu, na hora de voltarmos, peguei no braço de uma das mocinhas da família Moser, que me ajudou a atravessar a pinguela...

sexta-feira, 6 de junho de 2014

Mocidade


No ano de 1924, eu ainda lecionava e andava a cavalo pelas estradas arenosas, cheias de curva e barrancos, que me levavam da cidade para a escola.
O cheiro bom que vinha do capim e das plantas da beira da estrada, me fazia esquecer das canseiras das idas e vindas do meu ofício de professora. Ganhava pouco, mas o suficiente para manter o meu dia a dia de moça vaidosa que gostava de andar conforme o seu gosto. Nunca fui de acompanhar a moda exagerada do tempo, não gastava comigo sozinha, tinha também irmãos e parentes para ajudar. O salário era muito pouco, mas dava para repartir as migalhas. No aniversário de meus pais, sempre arrumava um dinheirinho para um presente.

Gostava de trabalhar e o meu sacrifício era saber que em casa ficava minha mãe com meus irmãos sem empregada, muitas vezes, tendo que fazer o serviço caseiro, que não era pouco. Ela costumava arrumar diaristas para o serviço mais pesado, que era o de lavar escadas, varrer o quintal, limpar o galinheiro e lavar roupa caseira, pois as mais pesadas iam para a lavanderia e minha mãe fazia gosto dela mesma passá-las a ferro. Daí então, chamava a Isaura que quebrava o galho levando o filho, Cid, que era meninote de seus sete anos, e ajudava a mãe no serviço caseiro, e fazia compras para minha mãe. Meus irmãos ainda pequenos e primos, Bráz, Wilson, Cida, também entravam na folia da brincadeira de carregar água nos baldes e lavarem com escova as escadas da casa da Rua Tiradentes, onde moramos mais de dez anos. Eu, sempre que podia, comandava a limpeza, ajudando também na esfregação do assoalho.

Agora, passados cinquenta anos ou mais, talvez sessenta e tanto, volto a recordar o meu trabalho caseiro e também saindo três ou mais vezes por semana para a ir até a Hortência, que costurava para muitas freguesas e pedia minha ajuda no bordado ou para riscar os trabalhos...

Hortencia, como já citei em outra Crônica de Saudade, era para mim e, para seus conhecidos, uma verdadeira heroína. O marido era doente, nem sempre podia trabalhar e, assim, ela garantia com seu trabalho de costureira, aliás, uma costureira que dava gosto às freguesas. Admirava seu modo de lidar com as pessoas, sempre com paciência e alegria. Acompanhei-a desde que a conheci em 1914 ou 1915, quando fomos vizinhas na rua José Bonifácio. Teve uma filha, a Ciloca e, mais tarde, a Maria de Lourdes. Anos depois é que teve mais dois, um deles falecido muito pequeno ainda.
Família antiga, gente de raça, os Freire e Assis. Ela casou-se com Ariovaldo Campos, também de família tradicional em Serra Negra; dona Francisca de Campos, sua mãe, seus irmãos Joaquim e Adeina Campos. Senhor Ariovaldo trabalhou como estafeta (mensageiro) no correio local e também num cartório. Foi professor de violino de muita competência e respeito.

Essa gente deve viver na lembrança dos serranos sempre, para perpetuar nos seus descendentes o seu nome.

sexta-feira, 23 de maio de 2014

Notas de um casamento na roça


Saímos a cavalo do sítio, onde tinha a escola que eu lecionava, eu, Sr. José e a família, às 10 horas da manhã, para irmos a um casamento, de uma das moradoras da fazenda vizinha. Eu aproveitava a companhia deles, para ir à cidade, pois era sábado e, tinha meus programas já feitos. Chegando ao lugar, onde eu pretendia separar-me deles, quem diz que deixaram-me seguir caminho!
– Não senhora, quem veio até aqui, vai chegar com a gente. Não pode fazer feio; irão perguntar pela professora e irão saber também que não quis ver a noiva, nem almoçar com os noivos.

Não quis me fazer de rogada e, fui até a casa do sítio, que era bem distante.
Entramos pelo quintal, onde era o terreiro de café e, já estavam armados os toldos, devido ao calor do sol daquela hora. Ali seria servido o almoço do noivado, antes do casamento. Pais e parentes dos noivos convidados iam chegando. Cumprimentavam a gente, com muita formalidade, pois eu era a professora, uma figura importante para todos.
A mesa era grande, coberta com uma toalha vermelha muito alegre, que dava uma nota bem alegre e festiva ao lugar sombreado. Os assados cheiravam bem e atiçavam o apetite. O almoço devia ser servido até o meio dia, para termos tempo de chegar à cidade, para o casamento, que seria às quatro horas da tarde. Mas, eu vi que ninguém tinha pressa, só eu é que estava preocupada com as horas.
Serviram a mesa, pratos e mais pratos; saladas em bacias de alumínio, macarronadas, carnes, frangos aos montes e, uma bela leitoa assada com farofa. Os brindes, copos e mais copos de vinho e, as galhofas e as piadas para os noivos, não terminavam e, também não terminavam nunca de
comer, com isso, a hora ia passando. Quando deram fim do almoço, foi uma debandada geral em busca dos cavalos que estavam nas cocheiras e nos ranchos perto dali. Os que ficaram, os mais velhos e empregados da fazenda, iam colocar em ordem o terreiro para à noite, onde haveria o baile tradicional.

Era uma família de muitos filhos, netos e demais parentes, que formavam quase uma centena deles. A noiva e o noivo foram à frente da cavalgada, e, ninguém podia atrasar-se na estrada, pois estávamos em cima da hora, principalmente a noiva, que ainda ia para a casa da costureira para vestir-se; tinha que ter tempo suficiente para isso e, ir para a igreja.

A algazarra era grande, uns caçoavam com os outros, naquele fala caipira de um italiano abrasileirado. Os pais com os filhos no colo ou nas garupas, as mães com os nenés seguiam com toda habilidade, comum desembaraço, que eu me espantava, em selas. Sentadas de lado no cilhão*, segurando firme as rédeas, com muita postura, apesar do filho no colo.
Como já disse, chegamos em cima da hora. Debandaram todos. A noiva foi para a casa da costureira, que, naturalmente, já estava esperando e, o noivo, foi vestir-se também em casa de amigos. Os demais ficaram esperando na igreja. Eu fui para minha casa, a fim de arrumar-me para assistir a cerimônia. Mas, quando cheguei, já havia terminado e, os noivos, já estavam saindo da igreja, para irem a uma confeitaria tomar refrescos e comer, naturalmente, uns doces da cidade, pois os do casamento haviam ficado para o fim da festa, que seria junto com o tradicional baile, tocado à sanfona, violas e, os roceiros cantores, na tulha do terreiro do café, nesta altura, já toda enfeitada de bandeiras vermelhas, amarelas, numa fantasia louca de cores.

* cilha - cinta larga, de couro ou de tecido reforçado, que cinge a
barriga das cavalgaduras para apertar a sela ou a carga

terça-feira, 20 de maio de 2014

Escola de Sant'Anna


As minhas caminhadas eram nas manhãs ensolaradas, quase sempre. 
Em uma dessas manhãs, toquei o cavalo displicente, olhando a estrada longe, o cheiro do capim gordura entrava pelas narinas da gente, com a aragem fresca a riçar os cabelos (que eu usava soltos por debaixo do chapéu de feltro - um Panamá de abas largas). Os passos do animal ressoando nas pedrinhas que escapavam rolando pela estrada era o único que se ouvia de humano, pois os passarinhos fugiam com o barulho da marcha dos cascos batendo forte.
Era uma estrada muito sinuosa e muito bonita. Descortinava-se ao longe de um lago, as árvores gigantes; os paus de coração de negro, roliços, vetustos* guardas da mata; os paus de alho e as floridas quaresmeiras, roxas, rosas, uma verdadeira festa de cores.
Meus olhos percorriam e pesquisavam tudo, comparando, do outro lado, um campo de aviação, que tinha a vegetação baixa da guanxuma ou das vassourinhas do campo. Atravessava a boca da serra, lugar silencioso, úmido pela cobertura das árvores cerradas de lado a lado da estrada, e, de vez em quando, um pássaro, talvez um anu, ou um gaviãozinho preguiçoso, fazia ruído com seu voejar de galho em galho. Ali era como um templo do silêncio, da meditação.
Assim que terminava a passagem da serra, tudo ficava iluminado pelo sol, que até então ficara oculto pelas ramas e árvores. Lá embaixo corria um riozinho muito tranquilo, entre as pedras que brilhavam a luz do sol.

A uma distância parei, pois o cavalo precisava beber – já andara hora e meia no sol ardente da manhã. Ouvindo o chiar da água a escorrer pela boca do cavalo, não notei de pronto um veadinho, um Bambi, elegante animalzinho parado a me olhar e ao cavalo. Ele estava logo adiante de nós, a se dessedentar** na fresca água que corria.

Logo que o cavalo acabou de beber, fazendo ruído, resfolegando de contente, o veadinho assustado deu um salto, e, subiu o morro acima com muita agilidade. Fiquei olhando a beleza que a natureza proporciona aos olhos humanos, e que, só raramente, o homem pode apreciar.

Já eram dez horas, eu tinha que abrir a escola, porque os alunos, nessa hora, já estariam a caminho dela. E toquei o animal, que por sinal, tinha o nome de “Paquera”, mas que nunca paquerou coisa nenhuma. Era lento e, só com um chicotinho que eu carregava, para afugentar as moscas, e que, de leve batia no seu pescoço, fazia despertá-lo e resolvia adiantar mais os passos.

O dono do sítio, Sr. José, caçoava comigo, que não sabia como é que eu chegava lá na fazenda com aquele cavalo... eu brincava, também respondendo: “– Devagar se vai ao longe...” Uma tarde de sábado, ele quis que eu trouxesse o alazão, cavalo dele, esperto. Eu já havia experimentado o animal logo que cheguei, mas não tinha saído pela estrada.


Ele falou-me:

– Quer ir com o meu cavalo para ver a diferença do andar e com isso chegar na cidade mais cedo?

– Não tenho pressa e pode o animal estranhar o cavaleiro, a amazona, pois tem conhecimento da montaria.

– Vai sem medo, mas não bata com o chicote, que ele se atira para frente e, se não for esperta, é capaz de cair... só isso que recomendo.


Eu quis me fazer de corajosa, aceitei a oferta com tanto receio do cavalo, que ia me carregar por quase três horas de estrada.

Tudo bem. Fui com cuidado de não ameaçar o cavalo com chicote, nem por pensamento.
A viagem correu que foi uma beleza, rápida. Ganhei mais de meia hora do caminho, com a leveza do animal, com sua obediência nas rédeas, e, eu sonhava em ter igual.


Ao chegar, tomei cuidado não entrando na cidade pelas ruas mais movimentadas, para evitar que ele se assustasse, mas ao subir a rua de casa, a Tiradentes, saía nessa hora, os alunos do grupo escolar, e eu, para apressar, bati de leve o chicote no seu pescoço. Não foi a batida que assustou o cavalo, foi a sombra do chicote que levantei.  Ele assustou, deu um pulo e, disparou comigo morro acima, parecia um filme de cowboy. Só parou quando puxei as rédeas no portão de casa. Dei um suspiro de alívio, pois minha sela americana não tinha muito apoio para uma cavalgadura dessa.

Os de casa correram a janela, com o ruído do galope na rua, que ainda naquele tempo não era asfaltada. Meu tio tirou os arreios, deu-lhe água e levou-o para o pasto, ali perto do Carlos Januazzi. Elogiou o cavalo alazão, vermelho, novo, esperto, tão esperto, que no outro dia, quando fomos tratá-lo, levando milho, água etc., ele não estava mais lá, pegou a estrada de volta para o sítio.


Foi uma das graças que o dono fez, sabendo que o cavalo voltava (fugia) para casa, de qualquer distância...



* vetusto - de idade muito avançada; antigo, velho. Provindo de época remota; antigo. Danificado ou deteriorado pelo tempo

** dessedentar - saciar a sede

quarta-feira, 14 de maio de 2014

1920 – Formatura

Vó Maura está de vestido escuro, no meio, apoiada na cadeira.

Foi o tempo mais feliz e despreocupado de minha vida, que corria como um riacho sem catadupas* nem corredeiras, mansamente. Eu estudava no ginásio Municipal, chamava-se assim porque era subvencionado pela Municipalidade, pois o número de alunos era tão pequeno, que não dava para cobrir as despesas com os honorários dos professores, luz e outras. Minhas colegas, que me lembro, eram: a Mafalda Felipe; a Fidalma Lombardi, a Alayde Rielli e muitas outras. Os moços eram: os Aliveiras, Urias, Manoel e Totz; um Rielli, Américo, o Marcos, um sobrinho do Monsenhor Manzini; o Barbosa; o Plínio Godoy e mais alguns que me esqueci o nome agora. Não chegava a cinquenta, o número de alunos. Eu levava muito a sério, mesmo sabendo que o meu estudo era apenas o preparatório, pois o papai não tinha condições de me mandar estudar fora, com um miserável ordenado de Secretário Municipal, e, uma família de seis pessoas para sustentar.

Naquele tempo, as mulheres somente faziam seu crochê, seus bordados, que não rendiam muito no orçamento familiar. As professoras, as parteiras, eram as únicas que trabalhavam cada uma ganhando uma miséria de ordenado. As professoras, duzentos e cinquenta mil réis e, as parteiras, dez ou vinte mil réis, por criança que aparavam. O jeito era economizar na casa, fazendo todo o serviço sem pagar nada para fora. Torrar café; lavar a roupa; passar a ferro, mesmo de brasa; criar galinhas, patos, gansos, marrecos. Todas essas aves havia em casa, quando o quintal comportava a criação dos mesmos. Papai comprava meio capado** no sítio e, mamãe, vovó e minhas tias, ajudavam a cortar o toucinho, fritar as carnes, que colocavam em latas, cobrindo de gordura, e, por uns tempos, comia-se linguiça, até chouriços com sangue, bem temperados, como papai gostava de comer. Nós não éramos abastados, mas o que papai ganhava, dava para vivermos sem apertos, isso até certo tempo, que eu me lembro, da minha infância. Mamãe fazia os vestidos, vovó fazia os ternos do meu irmão Mário, dos primos e demais parentes. Quando moça, vovó costurava para fora, fazia enxovais de casamento e, para meninas que iam para os colégios de Amparo.
Minhas tias, Luiza e Adelaide, eram prestimosas, sempre bem arrumadinhas e faziam também de tudo em casa. Foram elas que ajudaram mamãe a cuidar de nós, crianças, pois meu avô, Braz Blotta, morreu deixando-as com menos de dez anos cada uma.

Eu estudava para angariar conhecimentos de línguas francesa e inglesa, que eu gostava muito. Em português, eu aproveitei bastante os professores bons que tive durante meu curso no Grupo Escolar, que era muito bem ensinado, tanto que serviu para acompanhar minhas filhas no ginásio atual. Isso depois de quase trinta anos ou mais e, elas ganharam boas notas a minha custa, dos meus conhecimentos de português, isso eu sei, principalmente nas composições e redações. Também lecionei, uns anos, nos bairros de Serra Negra. Muita gente, mais antiga, que eram os moços, como eu, naquela época, devem lembrar-se da professora que saía a cavalo todas as manhãs, quer chovesse ou não, e andava, duas horas ou mais, até chegar na fazenda, no alto da Serra de Cima, divisa de Amparo, Monte Alegre ou de Socorro, não sei ao certo. Ali ficava a semana inteira, só voltava aos sábados para a cidade. Lecionei também em Três Barras, só durante um ano e, no ano seguinte, com Arminda Brusquini, que foi nomeada pelo Estado. Com meus alunos, derrubei paredes para alargar a classe, pois a outra sala ficou para o Estado. Fiquei com 20 e poucos alunos, e, ela, com os alunos de 8 a 11 anos, como era permitido pelo Estado naquela época. Era uma vida meio perigosa para duas moças que, sozinhas, enfrentavam a estrada de terra e, sem o mínimo conforto na escola que, nem privada tinha, nem água encanada, nada afinal! Não havia outro meio de condução, a não ser o cavalo ou a charrete e, quando comecei, ia a pé mesmo, acompanhada pela Sebastiana, uma mulherzinha muito boa e trabalhadeira, que apareceu em Serra Negra, lá pelos anos de 1922. Nós a conhecemos fazendo limpeza em quintais, lavando roupas e olhando crianças. Era muito prestativa, me acompanhou por uns vinte e poucos dias a pé, quando fui fazer a matrícula dos alunos, enquanto papai estava tratando de arrumar uma condução para mim. Não havia ônibus, era só de trole ou de charrete que se viajava lá por aquelas bandas.

Deixei de lecionar, quando fui convidada para substituir no Grupo Escolar, onde fiquei como interina, durante meses até me casar. Isso foi no ano de 1925. Minha recordação de meus 15, 16, 17 e até 18 anos, são boas, graças ao meu espírito esportivo. Dava-me bem com todas as moças, quer amigas íntimas ou não e com os rapazes também.

* catadupa - grande queda d’água; catarata. grande quantidade
** capado - animal, especialmente o porco, castrado para engorda

quinta-feira, 8 de maio de 2014

A agitada vida cultural da minha cidade



Os teatros e os cinemas do meu tempo deixaram também ótimas recordações. O Teatro Municipal, situado na esquina da rua José Bonifácio com Saldanha Marinho, era um edifício antigo, de construção severa. Era muito grande.  A plateia acomodava bem umas cem pessoas, com camarotes bem folgados, de onde assisti muitas peças teatrais com meus pais. Havia também a geral, com bancadas, que nos ensaios das comédias e peças, nós, meninas do catecismo, ensaiadas por dona Eliza e dona Carminha, sua filha, ficávamos brincando. Ali, muitos anos atrás, eram levados também muitos dramas e comédias, pelas senhoritas e moças da cidade, como minhas tias Luiza e Adelaide, a Maria de Oliveira e outras, cujo nome não me recordo. Os rapazes e senhores eram o Manoel de Oliveira, o Ezequias Marques, o Lola, o Frederico Domingues e outros amadores, com os quais nos divertiam com seus trabalhos artísticos.

Mas, numa noite de muito movimento, teatro cheio, com a peça no meio, começou um incêndio que não teve proporções mais dramáticas, nem feridos graves, porque deram logo o alarme. Mas, a correria foi grande e assustadora, com muitos desmaios, gritos e tombos, por parte das senhoras, que acabaram perdendo as bolsas, sapatos e luvas. Eu não estava, naturalmente, no teatro, mas sozinha, porque mamãe tinha dado luz a um menino há poucos dias e, meus pais não foram. A cidade ficou em polvorosa, devido aos boatos que corriam de imediato. Minha avó, preocupada, quis ir ver o que aconteceu. Quando chegou, minha tia Luiza estava toda despenteada e, minha tia Adelaide, com o vestido todo molhado, pois ajudou a jogar água nos bastidores, apesar do incêndio ter começado no porão do teatro. A fumaça foi maior que as chamas, que só chegaram a enegrecer as paredes, mas não queimaram os bastidores, nem o palco. No outro dia é que fomos saber o que havia sido queimado, dos prejuízos e do que havia sido salvo pelas pessoas que acudiram logo e que estavam mais próximas do palco.

Esse teatro foi, por muitos anos, a atração dos serranos, pois não havia outro, a não ser um salão onde o Átila passava filmes mudos e na maioria franceses, de Max Linder e outros atores cômicos. Era no largo da Matriz, onde mais tarde, foi o club Democrata. Alí, também, dancei muito com os rapazes do meu tempo, o Marino Ricci, que valsava muito bem, o Américo Scaramelli, o Renato Perondini, o Santini Mattedi, o Rodolfo Marchi e, muitos outros bons dançarinos, tendo como mestre-sala, o Giacomino, que residiu muitos anos em Serra Negra. Os cinemas bons, como o Joly e o Central, se desafiavam em trazer filmes da época, modernos. Foi o tempo áureo do cinema, dos filmes franceses, italianos e americanos. Fitas em série, de Pearl White – “O Cavaleiro Fantasma”, Judex, Fantomas, Ravengar e dezenas deles, um melhor que o outro. Havia domingo que não se sabia em qual cinema, ou melhor, qual filme assistir, tal era a competição.

quarta-feira, 7 de maio de 2014

Mataram o Manoel


Nos tempos remotos de minha infância, ouvia minhas tias cantarem modinhas de amor. Tinha a “Adeus Emilia”, que minha avó não gostava, porque achava que era maliciosa, sem graça alguma. Mas a música, era bonita e tinha embalo que encatava os ouvidos. Era agradável. A “Rosa Branca”, “Beijos Loucos”, também, eram modinhas de trovadores do nordeste de Minas, todas muito bonitas, as quais eu ouvia e aprendia logo, cantando com elas e as amigas que vinham em casa, a Vica Godoy e a Laura Nascimento, que era prima da minha mãe e tias. O divertimento melhor era o teatro, que também tomava parte nas peças, dramas, dramalhões daquele tempo, que fazia chorar até frades de pedra. Também algumas comédias bem boazinhas.

Quem trabalhava também nelas eram os rapazes e senhoras, tais como: o Lola, Frederico Domingues, Manoel de Oliveira, meu cabeleireiro, naquele tempo. Ele era do barbeiro que fazia a papai e cortava o cabelo de meu irmão. Eu gostava do Manoel. Numa das peças de teatro, muito comovente, eu ia porque fazia questão de ver minhas tias no palco. O Manoel tinha que levar um tiro e cair ensanguentado. Daí é que foi o negócio, porque ninguém esperava eu abrir um berreiro, achando que mataram o Manoel! Foi preciso que me retirassem do teatro e, no outro dia, o Manoel foi em casa me consolar.

O teatro incendiou-se numa noite de gala. Senhoras desmaiaram, moças atropelavam-se escadas abaixo e, senhoras gritavam para acalmar, foi um pânico geral. Os comentários, no dia seguinte, foram os mais diferentes possíveis. Quem ficou de fora do teatro, apreciou o atropelo geral do povo e a gritaria. Uns torceram os pés, outros rasgaram roupas, vestidos, bolsas perdidas, luvas e até enchimentos de cabelo foram encontrados no meio das cadeiras e camarotes. Ficou ainda, lá na esquina da rua José Bonifácio, o casarão do velho teatro, que tanto serviu a população em diversões.

terça-feira, 6 de maio de 2014

Tremor de Terra


Lá pelos ano de 1921, a madrugada era alta, ainda muito escuro, pois olhei pela vidraça e não vi sinal de nascer o sol. Acordei naturalmente, sem ter ouvido ruído algum, que, por acaso, me acordasse. Minutos depois o relógio da Matriz bateu quatro horas. Sentada na cama, não tive vontade de continuar a dormir, o sono fugira e eu não queria deitar-me. O que será que estava para acontecer comigo? Levantei o braço para arrumar o abajur, que dava com a luz nos meus olhos, mas parei no meio, pois, ouvi um ruído diferente, que vinha do lado de fora, da rua, do céu, ou sei lá de onde vinha, não consegui distinguir, aumentava de uma forma que parecia estar em cima de casa, de todas as casas.

Se mil carroças estivessem passando numa pedreira, não faria tanto ruído assim. Comecei a tremer. Ao mesmo que esse ruído, esse tropel de mil cavalos correndo, galopando, a casa tremeu inteira, por uns quatro segundos apenas. Apenas quatro segundos e o povo já estava nas ruas, indagando uns aos outros o que poderia ser. Um abalo sísmico, um tremor de terra? Os mais entendidos, os italianos, naturalmente, já enfronhados*, já tinham conhecimento em suas terras, foram os mais apavorados. Podia repetir e, com mais violência. Ficamos alarmados e a espera angustiante, era de matar a gente. Isso ocorreu numa madrugada de 27 de fevereiro de 1921.

Não se falou noutra coisa, senão no susto e na preocupação do que podia acontecer, pois chegou a tricar paredes, tremeu vidraças, sacudiu móveis. Foi no Estado de São Paulo todo. Os jornais deram pormenores e os prognósticos. Um acomodamento de terra. Foi um bulício** por semanas e discussões com os mais entendidos no assunto. A cidade nunca teve tanto movimento nas ruas, pois, à noite, reuniam-se nas esquinas para os comentários e, talvez, também um pouco de receio de ficaram em casa. Eu digo e confesso com franqueza, passei noites em claro depois daquele dia. O tropel macabro das carroças rolando sobre pedras da ladeira abaixo. Minha impressão é que ia desmoronar em cima das casas. E vovó, muito calma dizia: dorme menina, que isso náo vai se repetir. Mas o sono não vinha e eu, na escuridão da noite, parecia ouvir de novo o ruído infernal.

* enfronhar - colocar fronha. Informar-se, instruir-se - enfronhar-se num assunto.

** bulício - agitação de muita gente , burburinho.

segunda-feira, 5 de maio de 2014

Coisas de cidade do interior


Entrei para a escola, em 1912 e, o diretor ainda era o Dr. João de Toledo, que no ano seguinte, mudou-se para São Paulo, deixando o Prof. Frederico Domingues em seu lugar. Depois veio o Prof. Leonidas, com sua Sra. Calisa. Fiz o grupo escolar e depois o preparatório, que não deu em nada, pois não pude ir estudar em São Paulo, nem em Campinas, porque papai não podia pagar a pensão!

As moças e moços que estudavam fora, tinham parentes ou, podiam manter-se em pensões. Minha tia Eliza, que residia em São Paulo, negou-se a receber eu e a Lourdes e nem ofereceu a casa, ela disse que não queria meninas em casa, porque já tinha um sobrinho, o Sebastião, que criara e educara. Eu, então, me dediquei a aprender costura, bordado a máquina e outras atividades caseiras, pois serviço não faltava em casa, com tanta criança e, eu, ajudava o máximo que podia.

Em Serra Negra, como em todo interior, não era fácil para uma moça trabalhar sem ser professora, ou mesmo secretária, que naquele tempo não havia. Lecionei em escolas municipais uns tempos, mais tarde como substituta no Grupo Escolar, onde estive por muito tempo, até me casar. Meu irmão, de quem ainda não falei neste trecho, também fez o curso primário, no mesmo grupo que eu estudei. Mas, o Mário Toledo, era bastante inteligente, embora um pouco dispersivo. Gostava imensamente de pintura, mas era inconstante. Seus trabalhos em Serra Negra, sempre foram admirados por todos e, os comentários que se fazia a seu respeito, eram os mais elogiosos que se possa imaginar. Meu filho (Francisco Isolino Siqueira – Tio Xyko), em uma de suas visitas a Serra Negra, cidade onde nasceu, ainda conheceu um afresco feito pelo Tio Mario, conforme lembra-se muito bem, pois nessa época ele devia ter mais ou menos uns 9 a 10 anos, quando foi passar as férias na Fazenda em que era administrador, Sr. João Patricio, era pai de alunas do Hildebrando, em Amparo. Mas, para falar do meu irmão Mario, eu o farei em outra oportunidade. Serra Negra, diziam os antigos daquela época, “era bananeira que já deu cacho”. Mas, se tudo estacionou, foi por culpa daquela gente sem ideal, sem estrutura para o progresso. Nada faziam para melhorar a cidade. Nada que pretendiam ia para a frente, por falta, exclusivamente, de base e união. Foi o que sempre faltou, nas mínimas coisas, até mesmo no reconhecimento de seus antepassados, como é o caso de meu pai Manoel Carlos de Toledo, que tudo fez pela cidade, que nem era sua, mas a considerava como o sendo.

Triste lembrança


Vivi muitos dias alegres e com saúde. Mas vi meu irmão Maurino, de quatro anos, menino saudável, morrer de sarampo. Disseram que "recolheu", pois estava já bem melhor, sem febre e, saiu da cama para olhar pela janela a forte chuva de pedras, uma saraivada que cobria a calçada, deixando-a branca.
Era mesmo um bonito espetáculo para os olhos, mas não se esperava que ele descesse da caminha, que estava encostada na janela do quarto e corresse para a rua logo que a chuva passou. Ele viu outras crianças pegando pedrinhas de gelo na mão e quis fazer o mesmo. Eu gritei para a mamãe que ele havia saído do quarto, mas já era tarde. O menino, de camisolinha, estava com os pezinhos molhados pela enxurrada na calçada, quando foi levado para dentro e trocada sua roupa.
Mamãe lhe fez massagem com álcool na pernas e nos pés, deu-lhe chá quente, mas, estava ainda com tosse, essa aumentou e, veio a febre de novo. Daí por diante, nada mais fê-lo recuperar a saúde, falecendo dez dias depois de muito trabalho com médicos, de bronco pneumonia!

quarta-feira, 30 de abril de 2014

Doces Lembranças


Na cozinha da Carlota, cozinheira e quituteira muito conhecida das senhoras donas de casa de Serra Negra que a procuravam para as festas de aniversários, batizados e casamentos, via-se de tudo, entre panelas, formas, frigideiras; retratos dos Reis da Itália, Humberto e a Rainha Helena; folhinhas antigas, imagens de Santos, retratos de pessoas amigas da cidade e, nos cantos e de todo lado, panelas, caldeirões, assadeiras e todos os demais utensílios necessários para seus afazeres.

O forno ficava na parte de fora, no quintal, em um canto do muro, com a boca virada contra o vento. Forno de barro, pequeno, mas prestativo para todas as encomendas de sua dona.

Carlota era uma velha baiana.  Quando a conheci, estava muito doente, reumática e asmática. Até parece rima, mas não é. Quando ainda boa, com saúde, desdobrava-se no trabalho das encomendas. Eu ia sempre ajudá-la como vizinha criança ainda, mas com interesse nos bolos e pão de ló, feitos por ela. Sempre tinha um servicinho para mim. Ou na falta de açúcar, ou leite que não dava para os ingredientes correr até a venda. Mas eu, como ajudante, ganhava os tachos e as panelas para raspar e lamber. Era uma doçura a Carlota. Não eram somente seus doces que eram deliciosos. Fazia fios de ovos, manjar branco, doce de leite, rapadurinhas de amendoim para festas de aniversários. Quando acendia o forno, era para os assados: leitoa, cabrito, tortas e empadinhas. Daí vinham também as mães bentas, bolos e empadas. Carlota gostava de ouvir histórias da Tico-Tico, revista infantil que eu lia para as crianças quando iam lá em casa, pois eram vizinhos na rua José Bonifácio.

Viveu bastante, apesar das mazelas. Quando soubemos que estava doente, internada no hospital,  que ficou pouco, pois logo faleceu. Deixou saudades a velha baiana quituteira. Havia também, como boa cozinheira, a Maria Salomé e a Heliodora, que eram muito conhecidas e também bastante procuradas pelas famílias. Nhá Tudinha Brandão não saía de casa. Sua vida era fazer pães doces de ovos e outras quitandas que o Cafuringa, um mulato sarará, saia a vender nas casas. Quando chegava com o balaio e o punha no chão, tirava a toalha alva que a cobria, vinha um cheiro tão bom de pães frescos e doces, que até hoje tenho saudades, dos célebres pães doces de Nhá Tudinha Brandão.

segunda-feira, 28 de abril de 2014

A Lenda da Casa de Pedra

Cena do Filme – 12 anos de escravidão

Era o tempo da escravidão, e, os senhores de escravos andavam a cata dos negros foragidos. Eram eles escravos tratados como animais. Dormiam em enxergas*, sem cobertas. No inverno, só ceroula de canga e uma camisa de algodão e, como coberta, uma bata para cobrir o corpo. Acendiam um fogo no meio da sensala e, assim, se aqueciam, nas madrugadas de intensa geada. Sua comida era um angu com caldo de bacalhau ou sangue cozido, temperados com bastante pimenta. Ai daquele ou daquela escrava que tirasse um pedaço de carne dos panelões do fogão da casa grande, feitos pelas suas próprias mãos e temperados pela mãe preta mais antiga da casa. As meninas negras tinham que tomar conta dos patrõezinhos, das crianças, o dia inteiro. Faziam as crianças dormirem e ficavam à beira de suas camas para afugentar as moscas. Depois de casadas, quando tinham os filhos, davam de mamar para os recém nascidos dos patrões.

Na estrada que vai de Serra Negra para Lindóia havia uma casa feita de pedras, uma casa pequena, só com uma porta, sem janelas. O pasto rodeava essa casa, com algumas árvores por perto, nada mais havia ali. Mais abaixo, um córrego corria com suas águas para o Bairro das Três Barras, cujo nome vem de três rios pequenos que separam os sítios de moradores antigos do lugar. Ali, naquela casa, os senhores de escravos prendiam os fugitivos até que seu dono viesse procurar e pagar o sustento do prisioneiro. Aconteceu uma ocasião, que uma escrava ainda moça, fugitiva para não se entregar ao feitor, ficou pendurada pelos pulsos sem roupa alguma a cobrir sua nudez. Já tinham aplicado o castigo de deixar sem comer e beber por dois dias e, ainda umas chicotadas nas suas costas, que ficaram lanhadas de alto a baixo. Mas, como o dono não apareceu ela ficou ali abandonada, não resistiu e morreu dias depois. Quando a foram procurar, estava morta, toda comida pelos ratos e coberta de formigas. Dizia minha avó, que quem passasse pela estrada altas horas da noite, ouvia os gritos e gemidos dos escravos torturados.

Vovó também teve, em casa dela, escravas que se casavam e iam morar em outras partes dos sítios, mas já eram alforriados. Traziam, depois, seus filhos para ela batizar. Eu mesma conheci, quando menina de meus cinco anos, o Juca, afilhado de minha avó Marica. Tinha também a Luzia, uma ex-escrava da casa e também ficou muito tempo trabalhando para diversas famílias. Morreu com mais de 80 anos. Essa contava muita malfeitoria que assistiu quando mocinha. Mamãe presenciou, com dez anos, a festa da Bendita lei da Abolição da Escravatura que teve na cidade, no dia 13 de maio de 1888, e contava, que até acompanhou a banda de música da rua. Hoje, ainda há escravos que são os operários assalariados com baixo nível de vida. Mas esta é a tônica da vida, desde que o mundo é mundo, e que, nem mesmo Jesus vindo a terra conseguiu consertar. Seremos nós por acaso...

*enxerga - cochão rústico, geralmente recheado de palha. cama simples, pobre.

quinta-feira, 24 de abril de 2014

Ar de cidade pacata!


O que me faz recordar sempre a minha querida cidade Serrana é o seu ar de cidade pacata, quieta, sem ruído de carros a perturbar. Trânsito dos pedestres e das crianças, que percorriam sem susto as ruas. De vez em quando, um carro passava chamando a atenção das pessoas, que admiravam o seu rápido percurso de um lado para outro da cidade.
Esses carros eram poucos, um ou dois, que, com buzinas, alertavam os passantes. Um Ford, do senhor João Filipe e, o Studebaker, do Presidente da Câmara, o senhor José Fernandes de Carvalho, que vez ou outra, convidava o papai para levar a família para dar umas voltas pela cidade. Era um prazer para mim e para meus irmãos, todos pequenos ainda, sair e rodar pelas ruas no carrão do senhor José Fernandes.

Os carros de bois ainda percorriam as estradas e vinham até a cidade, trazer lenhas e encomendas, cana para o Mercado Municipal e outras mercadorias. Eu e outras meninas ouvíamos ao longe o chiado (no sítio eles falam que o carro quando é dos bons, ele canta) das rodas a descer o morro da estrada de Lindóia ou das Três Barras. Vinha cantando e seu nhem-nhem-nhem deixava as crianças atentas para verem os bois, que no seu andar lento, com o boiadeiro, ou carreiro a chuchar* para alertá-los, pois no seu andar lento, atrasava o serviço do carreiro. Dava pena dos coitados dos animais.

Os troles** eram de propriedade do senhor Beraldi, Dado e, do Cristiani, que levava até Monte Alegre nas festas, para cumprir promessas, ou então, para as Termas de Lindóia, ou mesmo para a vila de Lindóia, que pertencia ao Município de Serra Negra. Eram passeios deliciosos, que nos deixou recordações para sempre, pois, aproveitávamos mais as viagens do que se fosse de carro. Havia também cavaleiros, o José Celestino Soares, o Oscar Mangeon, que as tardes, passeavam com seus lindos cavalos, trotando pelas ruas, chamando atenção.



chucar* - sugar com a boca, chupar, mamar



trole** - veículo de pequeno porte, motorizado ou movido pela força humana, que trafega sobre trilhos.

quinta-feira, 17 de abril de 2014

Alegres recordações


Fatos também pitorescos da época, e, pequenos acontecimentos do dia a dia, fazem a alegria das recordações. A Mariquinha Quagelo – depois Cangnone – uma mocinha muito alegre e simpática, era nossa vizinha e, não saía de minha casa, por minha causa. Eu devia ter, naquela época, mais ou menos uns quatro anos, estava sempre no colo dela ou passeando com ela em sua casa, que ficava na rua Visconde do Rio Branco, perto da minha. A mãe dela era enérgica, brava com ela que, de vez em quando levava uns beliscões, que a deixavam com os braços roxos. Mas ela era só e gostava de crianças, por isso, fugia de casa e ia brincar comigo. Uma vez, estávamos balançando na rede e ela balançou tão forte, que caímos no chão. Foi uma gritaria só, minha mãe e eu.  Ela assustada, saiu correndo porta afora. Minha língua, até hoje, tem a marca dos dentes que a cortou, e, como saía muito sangue da minha boca, o susto foi maior que o ferimento, que não teve gravidade alguma. Mariquinha casou-se mais tarde com um moço que veio de fora, e, teve muitos filhos e filhas, que moram ainda em nossa querida Serra Negra.

Passava os dias de minha infância, dos quatro anos em diante, bem aconchegada pela família, minhas tia, vovó, que era uma avó admirável e boa para os netos, que até aquela data eram três. Eu, meu irmão Mário, o mais velho, dois anos mais e, o pequeno Maurino. Tio Genu foi para Itapecerica, ficar com o irmão mais velho, sacerdote, vigário do lugar. Lá ficou até casar-se e, voltou a residir em Serra Negra. Éramos vizinhos do senhor Zacarias Quaglio, e da dona Margarida, sua mulher, e dos três filhos, duas meninas do meu tamanho, mais ou menos, a Laura era a mais velha e a Olívia; e um menino.

Os quintais eram cercados por trepadeiras de chuchuzeiros e, nós disputávamos os primeiros frutos logo de manhã cedo. Papai tinha uma horta que era uma beleza, em qualidade e em quantidade: alfaces, chicórias, tomateiros, cenouras e muito repolho. Sei que ele distribuía para os vizinhos e amigos, como o senhor Vicente Lombardi e dona Irma, sua mulher, comadre de meus pais, que batizaram a Querubina. Ele estava doente, parece-me com câncer na boca, pois não podia falar. Passava pelas ruas em direção ao jornal de seu filho, o Adolfo que morou com meu pai e minha mãe,  quando professores no bairro da Serra de Cima. Ali, ele aprendeu as primeiras letras, junto com meu tio Genu, que ficou órfão aos sete anos de idade. 
Eu gostava da casa que tínhamos. Também como vizinhos, de um lado a venda do português senhor Manoel e, na esquina, o senhor José Brusquini e família, todas as filhas ainda bem mocinhas e estudantes. Conheci Arminda quando tomava conta da Iolanda, e, o Américo, ainda moço, com sua irmã Kulia, que era a mais velha, professora. Na frente de casa era a Prefeitura Municipal e o Grupo Escolar, onde agora é a atual Prefeitura. Dali eu apreciava a entrada dos alunos no grupo onde meu irmão Mario, que já tinha sete anos, frequentava. Seus colegas, filhos do senhor Francisco P. da Cunha, dos Vergal e muitos outros meninos daquele tempo, de 1910. Nesse ano, viajamos para São Paulo e Itapecerica, para visitar o meu tio, Padre Tancredo. Gostei de lá. Um lugarejo muito alegre, bem menor que Serra Negra, onde as moças usavam chales para saírem de casa, devido ao frio constante e a garoa. O clima era muito diferente de nossa cidade. Havia muitos casos de tuberculose e, havia famílias que tinham perdido até dois ou três parentes, vitimados por essa doença que, na época, não tinha recursos da medicina. Eu, como era criança, apreciava o viveiro de pássaros no quintal, o macaco que era um diabinho de imitador e fazia tudo que se mandava. O quati, outro bicho que fui conhecer em Itapecerica. O gramofone, que tocava as músicas da Casa Edson, quando meu tio resolvia ouvir suas músicas, choros e valsas do flautista Pixoxo. Era muito divertido. Nas festas que assistíamos lá, na Igreja de Nossa  Senhora dos Prazeres, frequentada por gente muito devota e fervorosa, muito simples mesmo. Tirou-se um retrato da família com todos os tios, minha avó e também o sacristão, seu Evaristo. Não sei onde foi parar esse retrato...

Para se ir a Itapecerica, tínhamos que tomar um trolinho ou carro, tilbury, naquele tempo haviam muitos, em Santo Amaro. Passamos por Embu, ou M’Boy em tupi guarani e, visitamos a igreja, que ainda lá existe, com suas imagens antigas, que davam medo em nós crianças. Com seus rostos muito graves, sisudos e muito coloridos. Eu me assustei com o Senhor dos Passos, uma imagem enorme com a cruz nas costas, quando, de repente, ao olhar embaixo de uma escada ou debaixo da mesma, me deparei com ela, dei um grito de susto.

Quando passamos em São Paulo, a antiga catedral era escura e, do lado de fora, amontoavam-se pedras para começar a cripta, isso deve ter sido em 1910. Anos depois, em 1926,  visitei a cripta já pronta, a Catedral ainda estava no começo.

As viagens eram por estrada de ferro. Da Mogiana, passava-se para a Paulista, em Campinas. Fomos também a Monte Alto, em 1911. O gostoso da viagem era o nosso menu mais variado. Mamãe e vovó, aprontavam um belo virado de frango, cuscuz e, um doce de leite. Comprava-se frutas, peras, maçãs, para comermos no trem. Mas eu não deixava de pedir uns cestinhos de taquara* cheios de jabuticaba, o uns saquinhos de balas, com papéis coloridos e frisados.

*taquara - bambu

segunda-feira, 14 de abril de 2014

Silveiras

Brasão da Cidade de Silveiras

A família do papai era toda lá do norte de São Paulo, da cidade de Silveiras, cidade classificada por Monteiro Lobato*, no livro intitulado Cidades Mortas, como uma das cidades mortas do interior do Estado de São Paulo. Mas, hoje, um século depois, está como Fenix, ressurgindo das suas próprias cinzas.
São cidades características pelo seu povo simples e trabalhador, sem entrosamento de outras raças. Vi, outro dia no jornal, a cidade de Silveiras, com suas casas, muitas que ainda conservam estilo colonial e, outras, já acompanham o estilo novo, modernas.
Sapé e Areias, lugarejos próximos a Silveiras, que papai contava as andanças dele e dos parentes por lá.

Foi um tio avô dele que fundou Silveiras, e, deu o nome à cidade que até hoje o conserva. O meu primo, *João Batista de Mello e Souza escreveu um livro sobre os Silveiras, entre muitos outros.
Minha avó Maria Carlos da Silveira, casou-se com meu avô Manoel Toledo Pires, e, teve todos os filhos lá, na pequena vila de Silveiras. Educou as filhas e, depois de viúva, criou galinhas, fez doces e pratos salgados para sobreviver, pois meu avô deixou todos os filhos muito novos. As filhas eram: Carolina, Elisa, Maria José e tia Nhazinha. Os filhos eram Manoel Carlos (papai) e Deolindo Carlos de Toledo. Não usaram o Pires do pai e nem o Silveira da mãe. Foi uma família dispersa pelas condições de vida, depois de todos eles criados. As moças formaram-se professoras e sairam lecionar em Cachoeira e em escolas particulares, como tia Elisa. Aí minha avó já pode descansar mais dos trabalhos caseiros. Tia Nhazinha morreu moça, deu muito trabalho para a família, devido a um casamento desastroso que a levou cedo, deixando um filho com dois anos. Foi tia Eliza, já casada com tio João Batista quem acabou de criá-lo. O menino formou-se mais tarde professor e, depois, trabalhou por muitos anos na Delegacia Fiscal em São Paulo.
Sebastião Toledo, filho de Nhazinha, casou-se com Lidia Guzzi, moça muito prendada e trabalhadeira, que lhe deu três filhas: Lucia, Maria Helena e Olga. As duas primeiras casadas e já avós (1984). A Olga mora com a mãe em São Paulo.

Papai veio moço para Serra Negra, depois de trabalhar em Mogi Mirim, onde perdeu um amigo quando no surto de febre amarela, que aconteceu nos fins do século passado (século XX).
Meu pai era contador e foi trabalhar com meu avô Braz, em seu armazém e loja em Serra Negra. Tinha dezenove anos quando casou-se com mamãe. Acabou tomando conta de toda a família, quando meu avô morreu no fim do século. Meu pai era um homem de grande coração. Cuidou da sogra como se fosse um filho. Nem os próprios filhos cuidaram dela, dando a assitência que ele deu. Respeitador, elogiava seus quitutes, e, se respeitavam muito. Sentiu muito quando ela morreu em 1925, com 74 anos de idade.
Pobre vó Marica, sentia muito a vida que ela levava, sempre preocupada com os filhos ausentes. O Padre Tancredo, que foi para outro Estado (Rio Grande do Sul) e nunca mais voltou. Tirou a batina e por lá ficou para sempre. Morreu com 86 anos e oito filhos já criados, entre homens e mulheres. A viúva, uma filha de salsicheiro, muito assanhada, para conquistar padre (também não culpo só a ela, pois quando um não quer...).

Outro que morreu também depois de vó Marica, foi o tio Carlos Blotta, ficando o tio Januário, que enviuvou e tornou-se a casar, tendo mais dois filhos, Saul e Claudio, também já casados e com filhos. As duas mulheres do tio Genu, a primeira Oscarlina de Castro e a segunda, Altemira, que faleceu três ou quatro anos depois dele.

A família Blotta continua em Serra Negra, onde está enterrado o meu avô, o meu pai e meu filho que faleceu aos três anos de crupe*, José Hildebrando. 


* livro: Cidades mortas – Monteiro Lobato

*João Batista de Mello e Souza nasceu em Queluz, Vale do Paraíba/SP, em 28 de maio de 1888. Muitos livros publicados, entre eles: "Menino de Queluz", "História do Rio Paraíba" e "Canções da Escola e do Lar". Morava no Rio de Janeiro. Era irmão mais velho de Júlio Cesar de Mello e Souza, o célebre escritor que adotou a alcunha literária de Malba Tahan.

 
*doença infantil que tem sintomas característicos como tosse e respiração difícil.

quarta-feira, 9 de abril de 2014

Fazendas e Sítios de Serra Negra


1916
Uma fazenda modelo que fui conhecer na Chave Pires.

O seu Juca Preto, José Antonio da Silveira, tinha muitas fazendas nos arredores da cidade, em Pedreira e Amparo.
Com suas filhas Alzira e Tita, fomos em um grupo formado pelas meninas colegas da escola e vizinhas de rua, a Rua José Bonifácio, onde morava dona Francisca Camargo, mãe do Sr. Juca Preto.

A casa da Fazenda era um casarão alto, com escadas na frente, salas confortáveis, tanto a de jantar, quanto a de visitas. O pomar era grande, cheio de árvores com as frutas da época: mangas, laranjas baianas enormes, bananeiras carregadas, já com bananas maduras no ponto. As jaqueiras carregadas de enormes jacas, para mim, constituíram-se em enorme surpresa. Jamais havia visto árvores tão pequenas com frutos tão grandes.

Passamos lá horas divertidas e bem aproveitadas, pois fomos conhecer a máquina de beneficiar café, o monjolo*, com suas águas correntes e borbulhantes.
Dona Sinhorinha, sempre muito gentil e carinhosa, quis conhecer uma por uma, as colegas das filhas. A mais velha de suas filhas, estudava na Escola Normal de Pirassununga. O Jovino estudava em casa, por uns tempos, com o braço na tipoia, pois havia caído de uma das árvores. Podia ter uns quinze anos naquela época.

Chupamos laranja, comemos pipoca, bebemos garapa, que foi moída na hora por um camarada a pedido de D. Sinhorinha. A avó, D. Francisca (Nhá Chica), não foi.
O Chicão, ainda bem moço, andava por lá, talvez ajudando o pai, que nesse dia havia ido para a fazenda Santa Maria, em Monte Alegre.
Voltamos à tardinha, contentes e cansadas das correrias pelos caminhos e pomares e, admirando a valentia dos fazendeiros, que com seus colonos, produziam e cooperavam para abundância dos celeiros do Brasil...

*monjolo - engenho rústico, movido a água, para pilar milho ou descascar café.

foto ilustrativa - Monjolo - Faz. Conde do Pinhal - São Carlos - SP

terça-feira, 8 de abril de 2014

A boa velhinha


Minhas lembranças são uma constante.
Sempre pensando em minha avó Marica e, com saudades o faço. Toda vez que eu me dirigia para a escola ou outro lugar qualquer, a cavalo ou de trolinho, minha avó me abençoava e desejava boa viagem, com muito cuidado e carinho por mim. Era uma pessoinha muito franzina, depois dos seus sessenta anos de idade, muito trabalhadeira e quase não dormia.

A hora que eu acordava com o ruído dela na cozinha a mexer na água e fazer o café, também me levantava e perguntava a ela: que horas são? Ela respondia: sei que o galo já cantou uma dúzia de vezes desde que me levantei... pelo céu escuro ainda, sem sol aparecendo no horizonte da serra ainda escura, eu calculava, antes de olhar no relógio: – Devem ser seis da manhã. E daí ia olhar o relógio na sala de jantar, que sempre papai dava corda antes de deitar-se e, os ponteiros acusavam, um quarto para as seis ou seis e dez.

Chegava às sete, mais ou menos, o padeiro e, também, o leiteiro Vicentini. O café já estava cheirando gostoso, mas o leite demorava mais até ferver, e, então, ficávamos conversando. Ela sempre preocupada com os filhos, que moravam longe. Um estava em Guaxupé, Minas, como chefe de estação; o outro, o Padre Tancredo, em Monte Alto e, depois, no Rio Grande do Sul, em Pelotas. Quando cresci mais e já sabia escrever cartas, sempre enviava notícias dela e de todos de casa. Eles escreviam só para mim, não sei porque e também nunca perguntava nas cartas, a razão por que não davam notícias com mais frequência. Nunca vovó Marica recebeu um presente desses dois filhos, que eu me lembrasse. Mamãe e Papai, apesar dos apertos de casa, sempre acudiram os irmãos e cunhados e, também, vovó, que Deus a tenha em bom lugar, pela paciência e pelo muito trabalho que teve em sua vida.

Com sua morte, ficou um vazio em minha casa. Isso foi em 1925. Tinha muitos amigos e, até o Pároco da cidade, o Monsenhor Manzini, achou falta da boa velhinha, que lhe enviava as palhas para o cigarro...

domingo, 6 de abril de 2014

Simplicidade


Aquela gente humilde, e mesmo pobre da minha cidade, é que mais me atraía, pois, como eles precisavam da gente, dos meus pais, nós também precisávamos deles. Era para fazer uma mudança, era para rachar uma lenha, ou para uma arrumação na casa, sempre estavam prestativos.

Meu pai gostava de rachar lenha para casa, mas não era sempre que podia fazer. O que ele gostava mesmo era de pegar os troncos grossos, que ia buscar no mato, com uma carroça que alugava, com o carroceiro e mais um ajudante, ia lenhar. Levava a comida pronta, água num garrafão, pão, linguiça o bastante e, ficavam até tarde no mato de um fazendeiro amigo, que dava a lenha para ele cortar. Madeira cheirosa, como o coração de negro, jacaré, pau d’alho e, outra madeira vermelha e dura de rachar. E, ele não cortava as toras, nós lá em casa é que ajudávamos a serrar, para depois partir ao meio com o machado. Nossa tarefa era juntar os cavacos (pedaços de lenha), levar para dentro do rancho e ajudar a serrar. Revezávamos eu, meu irmão e os primos, depois de crescidos. Tudo era um divertimento, uma brincadeira para nós.


Quem ia ajudar a recolher a lenha da rua, era, muitas vezes, o João Outeiro, ou o Zé Foguete, que nós assim o apelidamos, porque fazia um ruído esquisito com as mãos, debaixo das axilas. Muitas vezes também, a Isaura ia ajudar a limpeza da casa, fazer a arrumação do quintal e lavar a casa comigo. Ela e o filho, com meus irmãos e primos. Uns carregavam água nos baldes, outros ajudavam a puxar a mesma. Eu e ela esfregávamos o chão. Eram nove cômodos, fora o passeio em redor de casa e a escada. Ficávamos até a hora do almoço na limpeza. Depois, recolhíamos os móveis da sala, arrumávamos os quartos e, limpávamos tudo com óleo de peroba e querosene, para brilhar e cheirar gostoso.

“Cheiro de limpeza”.
Quando eu era pequena esse serviço era feito uma vez por mês, por meus tios, pais e tias que moravam em casa. Mas sempre tínhamos alguém para ajudar na esfregação do assoalho. A Sebastiana da Nhá Emília, uma serviçal da casa de mamãe, sempre tinha uma hora disponível para isso. Ela ajudava minha mãe na arrumação da cozinha e lavagem de roupas. À tarde, a casa brilhava, com tudo no lugar. Vasos de flores, tapetes, cortinas, uma beleza, não havia enceradeira, aspirador de pó e nem rodinhos para puxar a água, era tudo na força do braço!

sábado, 5 de abril de 2014

1925 um ano que marcou a família

Furrundum da Avó Marica

Mil e novecentos e vinte e cinco foi um ano cheio de intempestivos acontecimentos. Meu Tio Nenê havia falecido uns meses antes, em 1924, o que me causou muito aborrecimento e tristeza, pois eu achava que era o tio mais bacana, não desfazendo dos outros tios! Mas era o único irmão de papai e, era muito bom e alegre com a gente. No Pinhal, levava-me a passear de charrete, visitando os doentes que se encarregava de levar remédios e algum dinheiro, pois eram pobres assistidos pela federação que participava. Uma alma magnânima e caridosa.

Voltando aos anos 25, que era a minha tristeza, morreu a minha avó Marica, por quem eu tinha muita amizade e, ela era tudo para a gente de casa, não só no trabalho, pois não parava, senão para tirar umas fumaças no seu pito, ou para conversar com alguma vizinha que chegava. Costurava e, até me ensinou a fazer crivos no pano que trazia da escola para fazer em casa. Bordava também e, seu ponto bem firme e bonito. Fazia doces de cidra e dizia que era “furrundum”, um nome esquisito, mas era mineiro. Bolos de fubá, doce e salgado, que nos matava o esfomeado apetite de criança. Seus bolinhos eram uma delícia, também eram bolinhos de chuva, como ela chamava, pois fazia em dias frios e chuvosos, para tomarmos com café durante o dia. Morreu a minha querida velhinha que tanto fez a todos: curava crianças de susto, quebranto e de lombrigas com seus chazinhos caseiros e suas benzeduras em casa.  Rezando e conversando, as crianças voltavam a dormir sem sustos ou dores. Certa vez o Fernandinho, filho do Dr. Firmino, não deixava dormir ninguém em casa, por chorar a noite toda, ouviu a Letícia dizer que ia levar o menino lá para minha avó Marica, e, o menino ficou bom. O doutor disse, então, que tinha médica em nossa casa, melhor que ele, pois todos voltaram a dormir sossegados. Nesse mesmo ano, fomos a São Paulo e, até a Aparecida do Norte, cumprir promessa da mamãe e ficamos três dias fora de casa. Passei a Semana Santa em Amparo, com a família de seu Andrelino Lara, com suas filhas e filhos, o Geraldo, a Mariquita, a Guiomar e outros menores. Gostei muito deles e, sem saber que anos depois ia residir naquela cidade por dez anos.
Muita coisa se passou nesse ano de 1925, na minha querida cidade, cheia de gente amiga e ordeira. Nasceu meu sobrinho, o Carlos, filho de meu irmão Mário, casado com a Zizi Assís. Nasceu também o Saul Blotta, filho do tio Genu e da Tia Altimira, sua segunda esposa e, assim se passou o ano, com mortes e nascimentos na família.

*Furrundum ou furrundu é um doce típico da culinária caipira da região do Vale do Paraíba, no interior de São Paulo. É feito de cidra ralada ou de mamão verde ralado com rapadura derretida ou açúcar mascavo.
Fonte: Widipédia

sexta-feira, 4 de abril de 2014

Meu pai - Manoel Carlos de Toledo


Passeio da família em Serra Negra

Sua vida e suas obras

Nasceu em Silveiras, Estado de São Paulo, em 22 de julho de 1874. Era o quarto filho de seis do casal Manoel Pires de Toledo e de Maria Carlos da Silveira, que foi bisneta de um dos fundadores da cidade de Silveiras.

Foi para Serra Negra, meses depois da epidemia da febre amarela, que atingiu Mogi Mirim, onde estivera para tratar de um amigo, que acabou morrendo da moléstia. Conheceu então, nessa época, meu avô Braz Federico Blotta, negociante estabelecido em Serra Negra, havia anos e, ficou com o mesmo, trabalhando como guarda livros, ou contador. Casou-se em 26 de dezembro de 1894, com Angela Blotta, filha de Braz Federico Blotta e Maria José Nascimento Blotta, ela, filha de Serra Negra. Havendo, desse casamento, sete filhos, nascidos nessa cidade. Morrendo o sogro Braz Blotta, ele foi lecionar no Bairro da Serra de Baixo, durante um período de cinco anos, sendo transferido para Lindóia em 1905, onde lecionou com a mulher Angela, na escola mista de Lindóia, por dois anos. Lecionou também com o Prof. Silvino de Oliveira, em data incerta, nas Escolas Reunidas e, com outros professores, tal como D. Ana Lacerda de Moura.

No ano de 1907, foi convidado para a Secretaria da Intendência Municipal, onde se aposentou com 35 anos de serviço público municipal, em 1929. Trabalhou, também, como contador de diversas casas de comércio e lecionou contabilidade a muitos dos rapazes da cidade, hoje*, senhores de idade. Na prefeitura, organizou a biblioteca, os arquivos de livros e documentos, a contabilidade. Era o encarregado pelo orçamento Municipal e, pela Legislação Municipal, organizando e preparando os projetos para o legislativo, como assessoria, pelos seus conhecimentos e zelo que sempre teve pelo cargo que ocupava. Sempre foi do partido político do Governo e era contra os dissidentes, que o tinham como inimigo político.

Manoel Carlos de Toledo
Católico fervoroso, na igreja, pertencia a diversas associações religiosas e de caridade, que fundou juntamente com outros paroquianos, tais como: a Associação do Pão de Santo Antônio; a de São Vicente de Paula, cuja conferência é o fundador; a do Santíssimo Sacramento, entre outras. Trabalhou também com o Dr. Francisco Tozzi, nos primeiros exames laboratoriais das águas quentes de Termas de Lindóia, que foram enviadas por ele para São Paulo, convidando, nessa época, os médicos da região de São Paulo, do Rio e de outros locais, para visitarem as Termas e tomarem conhecimento no local, das suas propriedades medicinais, como está comprovado até os dias de hoje. Isso tudo por volta de 1913. Faleceu em 1930, vitimado por um distúrbio cardiovascular, deixando viúva, minha mãe e outros filhos.

* lembrando que Vó Maura escreveu suas recordações em 1984.

segunda-feira, 31 de março de 2014

Estrangeiros da minha terra


Foi na década de 1910 a 1920 que a minha querida Velhinha, ainda não tão velhinha, mas uma robusta senhora acarinhada por seus filhos e, também, pelos adotados, que não eram poucos, e eu, ainda uma criança, conheci muitos estrangeiros já radicados na minha querida terra.
Adotei Serra Negra como meu berço, pois vim com meus pais da querida Lindoia, com apenas dois anos. Lá, eles lecionavam na primeira escola mista. Lindoia era município de Serra Negra até poucos anos.

Dos estrangeiros da minha primeira infância, destaco três diferentes raças, pela convivência, pelos hábitos e pelas pessoas. O português Manuel do Porto, que era nosso vizinho, tinha a venda de secos e molhados em frente à Prefeitura Municipal, que foi Intendência, e, cujo intendente um deles foi o Sr. Marcolino Bueno de Godoy. Na venda do Manuel do Porto, eram dependurados nas portas, bacalhau, carne seca e, outras mercadorias. Mas o que as crianças mais apreciavam em suas artes, era ir beliscando o bacalhau e, aos pocuos, quando chegava à tarde, estava na quarta parte do pescado. Ele não se abalava com o furto, pois naquele tempo, o bacalhau era de baixo preço. Se fosse hoje, o negociante esconderia a quatro chaves, e, sairia correndo atrás das crianças.

Na segunda esquina da mesma rua, era o hotel do Sr. Manuel Vaz, casado com Dona Herculia Vichi. Ele era um senhor de muito respeito, um português muito educado, como só poderia ser um hoteleiro de gabarito. Tinha ele um filho, o Nelson, que trocava as letras quando falava depressa, o que causava risos às pessoas. Uma manhã fui na loja do Sr. Chedid e, lá estava o Nelson fazendo compras e dizia: “– Telo um taitel de linha peta pa minha mãe.” O sírio atrapalhado não entendia e perguntava: “– O que é que quer o menino?” E o Nelson já brabo repetia: “– Telo um taitel de linha peta pa minha mãe e adora.” Ficava pior a emenda do que o soneto. Eu tive que traduzir para o sírio, o tatibitate do menino.

Aconteceu também, anos depois, com minha sogra que lecionava a uma síria recém chegada e que recebia aulas de linguagem e escrita. A lição era sobre a Bandeira Brasileira. O falar difícil da Clarice, que trocava também as letras, lia muito entusiasmada o trecho: “– A binderra du Bresil é verte e marrela.” Mas logo ela estava perfeitamente dominando nosso idioma.
Outro tipo interessante era o bananeiro Antonio Citrangulo, que apregoava às suas bananas à moda italiana: “– Olhem o bananeiro, pode comer até as cascas, uma dúzia por um tostão!” Acabava vendendo todas e, dando a mais, as nanicas. A freguezia era grande e o bananeiro muito entusiasmado pelos fregueses.

Parecia ser, a nossa Querida Velhinha, muito procurada e, ser também, o reduto de estrangeiros que a procuravam e a adotavam como sua terra. Procuravam nela a paz, o trabalho e a saúde para a família.

Abençoada terra do meu afeto e da minha saudade...

quinta-feira, 27 de março de 2014

A grande geada


No ano de 1918, ocorreu a maior calamidade que jamais poderia acontecer em São Paulo e demais Estados do sul. Mas, principalmente, no Estado de São Paulo, onde foi a grande geada que arrasou plantações, queimando tudo: laranjais, hortas, jardins e, principalmente, os cafezais. Os cafezais foram os mais atingidos, por estarem plantados em lugares baixos e onde o frio e o gelo caiam com mais abundância demorando mais a derreter. Os fazendeiros tornaram-se pobres em apenas uma noite! Dormiram prevendo muito frio, mas não aquela geada arrasadora que os deixou apavorados. Uns se conformaram com a desgraça que não esperavam, caída do céu; outros, mais fracos, se suicidaram, diante de tamanha calamidade.

Recordo-me que acordei, como todas as manhãs, muito cedo, com minha avó que se dirigia a cozinha. Fazia um frio terrível, diferente do frio serrano que estávamos acostumadas. Não me agasalhei e tremia muito. Minha avó Marica mandou-me colocar um casaco, pois ela também estava com um xale nas costas, paletó de flanela, mas chinelos, porque coisa que ela não gostava era se agasalhar. Quando abrimos a porta da cozinha para pegar lenha no rancho, lá fora, estava tudo branco no jardim. A água não queria sair da torneira, estava congelada. Dos varais, cuja roupa ainda estava estendida, duras como papelão. Na cerca, que circundava o quintal, um do outro, montinhos de gelo que se desmanchavam como sal. A torneira do tanque, que sempre corria um filete de água, estava um fio de gelo como uma vela.
Era tudo lindo, pelo menos eu achava, pois era inédito à minha vista, mas já a minha avó, comentava que isso não era bom. Que a geada fraca queimava a *barroca, como iria ser então, com essa calamidade de frio e gelo?

Vieram notícias trágicas com essa desgraça no Estado todo. No Paraná foi uma tragédia e, também, em Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Nevou muito nesses estados e o povo estava alarmado.
Replantaram-se os cafezais e, daí, veio a alta do café, arroz e de todos os demais cereais que haviam sido perdidos.

*barroca - escavação causada por enxurrada; barranco. monte de barro.
foto: ilustrativa

quarta-feira, 26 de março de 2014

Gripe Espanhola

“Instituto Butantan. Produtos indicados na gripe espanhola. Soro hemostático, extrato suprarenal, extrato tonisular, soro normal de cavalo e soro camforado”. 2 de nov de 1918

Anos de 1918 e 1919

Você deve se lembrar de quando acabou a guerra em 1918 a alegria que houve no Brasil, e em nossa querida e sempre florida Serra Negra. Passeatas com muita música pelas ruas, muita alegria com a paz que parecia retornar no mundo todo.

Mas a alegria durou pouco, pois a tal da gripe espanhola, aqui para nós foi um flagelo total. Não houve casa que não ficasse com todos ou com uma parte na cama, muitos perderam seus parentes e amigos. Não havia médico na cidade, além do Dr. Firmino Cavenagni. Esse mesmo apanhou a gripe com pneumonia e, foi preciso esperar vir um médico do Rio de Janeiro, Dr. Paranhos, que tratava do Dr. Firmino e de todos os enfermos, que não eram poucos. Nessa ocasião, morreu tia Oscarlina, de vinte e quatro anos, deixando três filhos. Moça ainda, não resistiu a pneumonia dupla e, também, por falta de assistência médica. Era medicada sem que o médico pudesse visitá-la, pois estava no bairro das Três Barras e, o médico, não podia deixar outros doentes para socorrê-la. Foi uma tristeza, saber que tantos precisavam de médicos e remédios e que tudo faltava no momento mais cruciante (insuportável). Meu irmão ia a cavalo, debaixo para cima, levando as poções que o doutor receitava, não só para ela, mas para diversas pessoas. Muitos morreram nesse mesmo momento de angústia das famílias. No Rio de Janeiro, então, amontoavam os cadáveres nos hospitais, que eram removidos por caminhões para o cemitério, dia e noite. Esta foi a página mais triste de toda a nossa história. Faltar médicos na hora em que mais era necessária a sua presença na cidade.

Justamente, nesse ano, tinha-se programado um espetáculo teatral infantil, em benefício de uma obra assistencial, e que, seria assistido pelo nosso Bispo Diocesano, Dom Nery. As meninas que tomavam parte nos ensaios foram adoecendo de duas em duas, ou até mais, pois foi preciso interromper os ensaios por falta de comparsas. A peça era a Branca de Neve, de escritor campineiro, Benedito Otavio, sendo uma opereta muito bonita.

Foi proibido ajuntamentos, fecharam-se cinemas, o jardim público ficou deserto por uns meses, até passar a epidemia. Terminado os ensaios, levou-se a peça da Branca de Neve, que foi muito elogiada, pois a música era muito bonita e, os anõezinhos, que eram sete, eram meninas da sociedade, a Diva Brusquini e uma das Cristiani, a Isabel Faria, Dirce Godoy, Lila Oliveira, Odila Amaral e outras que não me vem a memória. Eu fiz o papel de caçador. Maria Luiza de príncipe, muito delicada e esplêndida no seu papel. A rainha era a Jupira Amaral. Conceição de Souza Quirino era o rei, muito vistoso na sua roupagem real. Havia também as pajens. Foi uma peça muito bem ensaiada, pela Carminha que tocava piano e, pelo Maestro Livio Benditis, que dirigia a orquestra. Aplaudiram muito e houve pedidos de bis. Na primeira apresentação, fomos muito elogiadas pelo Bispo Dom Nery.

E assim era nossa vida na querida velhinha que não era tão idosa, nem centenária, mas muito querida por todos os seus filhos.

foto: Reclames do Estadão

terça-feira, 25 de março de 2014

Primeira Guerra Mundial


A embarcação que transportou
os reservistas italianos de São Paulo para bordo
do navio "Regina Helena", de onde seguiriam
para a Europa, para lutar por sua pátria, em 1915

... e veio a guerra de 1914 a 1918.

Foi deflagrada na Europa, por motivo do atentado ao arquiduque Francisco Fernando da Áustria, assassinado por um terrorista sérvio. A Alemanha, Áustria, Rússia e Turquia provocaram a conflagração, entrando nela a França, Inglaterra, Itália, Bélgica e Espanha. Os Estados Unidos e o Brasil também tomaram parte até o fim da guerra, na qual pereceram milhares de soldados de todas as raças. Foram bombardeados pelos alemães alguns navios brasileiros: o Paraná, Macáu, Tijuca e Lapa. Do Brasil foram enviados aviadores-navais para os Estados Unidos.

Jovens de Serra Negra convocados para a Revolução

Da nossa pequena cidade, tão serena, os italianos e seus filhos estavam apavorados. Corria o boato que os moços da idade para o serviço militar, tinham que se apresentar como voluntários no consulado italiano. As mães e demais familiares desses moços choravam e pediam aos Santos protetores o seu auxílio contra a guerra. Em minha casa, a avó Marica e a Tia Oscarlina rezavam o terço todos os dias, invocando proteção.

Quatro anos dessa agonia. As notícias dos jornais de São Paulo e o nosso “O Serrano” (jornal de Serra Negra) traziam manchetes desoladoras sobre o que estava acontecendo na Europa. A França sendo invadida, a Bélgica e a Itália sob o domínio dos Tedescos. Depois de quatro anos de sofrimento moral de nossos compatriotas e aliados, a Itália conseguiu reconquistar as terras, e Gorizia foi retomada. Foi uma festa em Serra Negra pelos italianos ali radicados, mas com parentes na Europa. Festejava-se a vitória todos os anos, no dia 20 de setembro, com passeios e banda de música no jardim público da cidade.

A confraternização foi geral, quando terminou essa primeira guerra mundial do século vinte.

foto 1: Iba Mendes Pesquisa 
foto 2: arquivo de Carmen Momisso
 

segunda-feira, 24 de março de 2014

A árvore


Apto. na rua Major Solon, Cps - março 1984

Gosto de avistá-la pela janela
do meu apartamento que dá na praça.
É a mais bela, dentre outras árvores,
com seus ramos carregados de ninhos,
que trazem os ruidosos passarinhos,
que esvoaçam num rumor sem fim...

Não sei se deu flores ou frutos nos seus galhos.
Se elas, as flores, eram brancas ou amarelas.
Mas sei que a sua imagem é tão bela
entre seus companheiros de jardim
os Flamboaiãs*, com flores carmesins...

Mas ela, imponente, majestosa
traz consigo os seus ramos
abertos, para serem abrigo,
dos pobres e indefesos passarinhos.

CPS/JAN/1983
* flamboaiã (aport. de fr. flamboyant)

sexta-feira, 21 de março de 2014

Tempo e Lembranças do Tempo


As lembranças de meus antepassados e amigos, que residiram desde o começo do século em minha cidade, em convivência quase que diária com meus pais, é uma constante em meu pensamento. A cidade, sendo pequena, dava para ser constante o encontro com amigos e parentes, em uma prosa, ou mesmo em uma visita de compadres.
Os encontros hoje em dia, são em clubes, teatros, cinemas. Os jovens esportistas e as moças de colégios têm seus lugares preferidos, seus bares, boates e jardins onde se reúnem.

Mas era tão gostoso o ritual da visita ao compadre, mesmo sem motivo de grande importância.  O sorriso largo na chegada, o abraço apertado sem hipocrisia, o convite alegre e as palavras simples – identificação e satisfação do hospedeiro: “– Vamos chegando.” Estas simples palavras, diziam toda satisfação de quem nos recebia.
Havia, também, as visitas mais protocolares. O nascimento de um filho e aniversário de um dos parentes ou amigo. Daí já não era aquele papo informal, caseiro, sem cerimônia, “dos Maria dá cá o pito”, de um para outro fazendo seu cigarro de palha.
Tomava-se o cafezinho feito na hora, coado no coador de pano, chaleira no fogão de lenha que chalreava. Como toda cozinha grande, como eram as antigas, tinham grandes chaminés que, às vezes, pegava fogo e, era então a correria da dona da casa para chamar um pedreiro para limpar e apagar o fogo que bufava na chaminé. Às vezes, mas nem sempre, saía um bolinho fofinho, coberto de açúcar e canela. Minha avó e minha mãe, quando eram avisadas das visitas, tinham sempre o que oferecer. Lembro-me de uma vez, que chegou uma senhora em casa, com sua filha ou neta. Com não  podia tomar o café que eu trouxe com a bandeja e xícaras, bem arrumadinhas, aceitou um cálice de licor de figo, que eu fizera uns dias antes. Não sei se o licor ainda não estava no ponto, só sei que ela se atordoou e, na hora da saída, foi preciso que mamãe e a neta dela lhe dessem o braço, pois estava tonta. Ela saiu perdendo, porque os bolinhos de minha vó estavam esplendidos, com o café coado na hora.

Eu gostava de acompanhar meus pais, quando era convidada, mas preferia ir quando havia criança na casa, porque ficar sentada, quietinha numa cadeira, sem se mover, era difícil, mas diziam que era feio se mexer muito. Era um sacrifício. Foi o que aconteceu uma vez, que adormeci ou cochilei, e, quase ia caindo da cadeira, se meu padrinho Emilio Zelante, que estava de olho em mim, não me acudisse logo. Sua filha Aurea estava na fazenda com outros irmãos. Não era costume levar crianças em visitas de cerimônia, como até hoje, mas eram meus padrinhos de crismas e fomos convidados.

Minha avó pouco saía de casa. Ia à igreja aos domingos, de vez em quando na casa de um dos primos, ou dos filhos, como a família Zanoni, que eram parentes nossos, sendo o pai deles, irmão de minha avó Marica. Lembranças da Nhá Tudinha Brandão, que íamos quando convidadas para tomar um cafezinho, com broinhas, daquelas que o João Cafuringa vendia nas ruas e que eram deliciosas.
Tempo bom que a gente relembra sempre, com saudades das pessoas, que não se vê mais...