quarta-feira, 14 de maio de 2014

1920 – Formatura

Vó Maura está de vestido escuro, no meio, apoiada na cadeira.

Foi o tempo mais feliz e despreocupado de minha vida, que corria como um riacho sem catadupas* nem corredeiras, mansamente. Eu estudava no ginásio Municipal, chamava-se assim porque era subvencionado pela Municipalidade, pois o número de alunos era tão pequeno, que não dava para cobrir as despesas com os honorários dos professores, luz e outras. Minhas colegas, que me lembro, eram: a Mafalda Felipe; a Fidalma Lombardi, a Alayde Rielli e muitas outras. Os moços eram: os Aliveiras, Urias, Manoel e Totz; um Rielli, Américo, o Marcos, um sobrinho do Monsenhor Manzini; o Barbosa; o Plínio Godoy e mais alguns que me esqueci o nome agora. Não chegava a cinquenta, o número de alunos. Eu levava muito a sério, mesmo sabendo que o meu estudo era apenas o preparatório, pois o papai não tinha condições de me mandar estudar fora, com um miserável ordenado de Secretário Municipal, e, uma família de seis pessoas para sustentar.

Naquele tempo, as mulheres somente faziam seu crochê, seus bordados, que não rendiam muito no orçamento familiar. As professoras, as parteiras, eram as únicas que trabalhavam cada uma ganhando uma miséria de ordenado. As professoras, duzentos e cinquenta mil réis e, as parteiras, dez ou vinte mil réis, por criança que aparavam. O jeito era economizar na casa, fazendo todo o serviço sem pagar nada para fora. Torrar café; lavar a roupa; passar a ferro, mesmo de brasa; criar galinhas, patos, gansos, marrecos. Todas essas aves havia em casa, quando o quintal comportava a criação dos mesmos. Papai comprava meio capado** no sítio e, mamãe, vovó e minhas tias, ajudavam a cortar o toucinho, fritar as carnes, que colocavam em latas, cobrindo de gordura, e, por uns tempos, comia-se linguiça, até chouriços com sangue, bem temperados, como papai gostava de comer. Nós não éramos abastados, mas o que papai ganhava, dava para vivermos sem apertos, isso até certo tempo, que eu me lembro, da minha infância. Mamãe fazia os vestidos, vovó fazia os ternos do meu irmão Mário, dos primos e demais parentes. Quando moça, vovó costurava para fora, fazia enxovais de casamento e, para meninas que iam para os colégios de Amparo.
Minhas tias, Luiza e Adelaide, eram prestimosas, sempre bem arrumadinhas e faziam também de tudo em casa. Foram elas que ajudaram mamãe a cuidar de nós, crianças, pois meu avô, Braz Blotta, morreu deixando-as com menos de dez anos cada uma.

Eu estudava para angariar conhecimentos de línguas francesa e inglesa, que eu gostava muito. Em português, eu aproveitei bastante os professores bons que tive durante meu curso no Grupo Escolar, que era muito bem ensinado, tanto que serviu para acompanhar minhas filhas no ginásio atual. Isso depois de quase trinta anos ou mais e, elas ganharam boas notas a minha custa, dos meus conhecimentos de português, isso eu sei, principalmente nas composições e redações. Também lecionei, uns anos, nos bairros de Serra Negra. Muita gente, mais antiga, que eram os moços, como eu, naquela época, devem lembrar-se da professora que saía a cavalo todas as manhãs, quer chovesse ou não, e andava, duas horas ou mais, até chegar na fazenda, no alto da Serra de Cima, divisa de Amparo, Monte Alegre ou de Socorro, não sei ao certo. Ali ficava a semana inteira, só voltava aos sábados para a cidade. Lecionei também em Três Barras, só durante um ano e, no ano seguinte, com Arminda Brusquini, que foi nomeada pelo Estado. Com meus alunos, derrubei paredes para alargar a classe, pois a outra sala ficou para o Estado. Fiquei com 20 e poucos alunos, e, ela, com os alunos de 8 a 11 anos, como era permitido pelo Estado naquela época. Era uma vida meio perigosa para duas moças que, sozinhas, enfrentavam a estrada de terra e, sem o mínimo conforto na escola que, nem privada tinha, nem água encanada, nada afinal! Não havia outro meio de condução, a não ser o cavalo ou a charrete e, quando comecei, ia a pé mesmo, acompanhada pela Sebastiana, uma mulherzinha muito boa e trabalhadeira, que apareceu em Serra Negra, lá pelos anos de 1922. Nós a conhecemos fazendo limpeza em quintais, lavando roupas e olhando crianças. Era muito prestativa, me acompanhou por uns vinte e poucos dias a pé, quando fui fazer a matrícula dos alunos, enquanto papai estava tratando de arrumar uma condução para mim. Não havia ônibus, era só de trole ou de charrete que se viajava lá por aquelas bandas.

Deixei de lecionar, quando fui convidada para substituir no Grupo Escolar, onde fiquei como interina, durante meses até me casar. Isso foi no ano de 1925. Minha recordação de meus 15, 16, 17 e até 18 anos, são boas, graças ao meu espírito esportivo. Dava-me bem com todas as moças, quer amigas íntimas ou não e com os rapazes também.

* catadupa - grande queda d’água; catarata. grande quantidade
** capado - animal, especialmente o porco, castrado para engorda

Nenhum comentário:

Postar um comentário