terça-feira, 20 de maio de 2014

Escola de Sant'Anna


As minhas caminhadas eram nas manhãs ensolaradas, quase sempre. 
Em uma dessas manhãs, toquei o cavalo displicente, olhando a estrada longe, o cheiro do capim gordura entrava pelas narinas da gente, com a aragem fresca a riçar os cabelos (que eu usava soltos por debaixo do chapéu de feltro - um Panamá de abas largas). Os passos do animal ressoando nas pedrinhas que escapavam rolando pela estrada era o único que se ouvia de humano, pois os passarinhos fugiam com o barulho da marcha dos cascos batendo forte.
Era uma estrada muito sinuosa e muito bonita. Descortinava-se ao longe de um lago, as árvores gigantes; os paus de coração de negro, roliços, vetustos* guardas da mata; os paus de alho e as floridas quaresmeiras, roxas, rosas, uma verdadeira festa de cores.
Meus olhos percorriam e pesquisavam tudo, comparando, do outro lado, um campo de aviação, que tinha a vegetação baixa da guanxuma ou das vassourinhas do campo. Atravessava a boca da serra, lugar silencioso, úmido pela cobertura das árvores cerradas de lado a lado da estrada, e, de vez em quando, um pássaro, talvez um anu, ou um gaviãozinho preguiçoso, fazia ruído com seu voejar de galho em galho. Ali era como um templo do silêncio, da meditação.
Assim que terminava a passagem da serra, tudo ficava iluminado pelo sol, que até então ficara oculto pelas ramas e árvores. Lá embaixo corria um riozinho muito tranquilo, entre as pedras que brilhavam a luz do sol.

A uma distância parei, pois o cavalo precisava beber – já andara hora e meia no sol ardente da manhã. Ouvindo o chiar da água a escorrer pela boca do cavalo, não notei de pronto um veadinho, um Bambi, elegante animalzinho parado a me olhar e ao cavalo. Ele estava logo adiante de nós, a se dessedentar** na fresca água que corria.

Logo que o cavalo acabou de beber, fazendo ruído, resfolegando de contente, o veadinho assustado deu um salto, e, subiu o morro acima com muita agilidade. Fiquei olhando a beleza que a natureza proporciona aos olhos humanos, e que, só raramente, o homem pode apreciar.

Já eram dez horas, eu tinha que abrir a escola, porque os alunos, nessa hora, já estariam a caminho dela. E toquei o animal, que por sinal, tinha o nome de “Paquera”, mas que nunca paquerou coisa nenhuma. Era lento e, só com um chicotinho que eu carregava, para afugentar as moscas, e que, de leve batia no seu pescoço, fazia despertá-lo e resolvia adiantar mais os passos.

O dono do sítio, Sr. José, caçoava comigo, que não sabia como é que eu chegava lá na fazenda com aquele cavalo... eu brincava, também respondendo: “– Devagar se vai ao longe...” Uma tarde de sábado, ele quis que eu trouxesse o alazão, cavalo dele, esperto. Eu já havia experimentado o animal logo que cheguei, mas não tinha saído pela estrada.


Ele falou-me:

– Quer ir com o meu cavalo para ver a diferença do andar e com isso chegar na cidade mais cedo?

– Não tenho pressa e pode o animal estranhar o cavaleiro, a amazona, pois tem conhecimento da montaria.

– Vai sem medo, mas não bata com o chicote, que ele se atira para frente e, se não for esperta, é capaz de cair... só isso que recomendo.


Eu quis me fazer de corajosa, aceitei a oferta com tanto receio do cavalo, que ia me carregar por quase três horas de estrada.

Tudo bem. Fui com cuidado de não ameaçar o cavalo com chicote, nem por pensamento.
A viagem correu que foi uma beleza, rápida. Ganhei mais de meia hora do caminho, com a leveza do animal, com sua obediência nas rédeas, e, eu sonhava em ter igual.


Ao chegar, tomei cuidado não entrando na cidade pelas ruas mais movimentadas, para evitar que ele se assustasse, mas ao subir a rua de casa, a Tiradentes, saía nessa hora, os alunos do grupo escolar, e eu, para apressar, bati de leve o chicote no seu pescoço. Não foi a batida que assustou o cavalo, foi a sombra do chicote que levantei.  Ele assustou, deu um pulo e, disparou comigo morro acima, parecia um filme de cowboy. Só parou quando puxei as rédeas no portão de casa. Dei um suspiro de alívio, pois minha sela americana não tinha muito apoio para uma cavalgadura dessa.

Os de casa correram a janela, com o ruído do galope na rua, que ainda naquele tempo não era asfaltada. Meu tio tirou os arreios, deu-lhe água e levou-o para o pasto, ali perto do Carlos Januazzi. Elogiou o cavalo alazão, vermelho, novo, esperto, tão esperto, que no outro dia, quando fomos tratá-lo, levando milho, água etc., ele não estava mais lá, pegou a estrada de volta para o sítio.


Foi uma das graças que o dono fez, sabendo que o cavalo voltava (fugia) para casa, de qualquer distância...



* vetusto - de idade muito avançada; antigo, velho. Provindo de época remota; antigo. Danificado ou deteriorado pelo tempo

** dessedentar - saciar a sede

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