sexta-feira, 23 de maio de 2014

Notas de um casamento na roça


Saímos a cavalo do sítio, onde tinha a escola que eu lecionava, eu, Sr. José e a família, às 10 horas da manhã, para irmos a um casamento, de uma das moradoras da fazenda vizinha. Eu aproveitava a companhia deles, para ir à cidade, pois era sábado e, tinha meus programas já feitos. Chegando ao lugar, onde eu pretendia separar-me deles, quem diz que deixaram-me seguir caminho!
– Não senhora, quem veio até aqui, vai chegar com a gente. Não pode fazer feio; irão perguntar pela professora e irão saber também que não quis ver a noiva, nem almoçar com os noivos.

Não quis me fazer de rogada e, fui até a casa do sítio, que era bem distante.
Entramos pelo quintal, onde era o terreiro de café e, já estavam armados os toldos, devido ao calor do sol daquela hora. Ali seria servido o almoço do noivado, antes do casamento. Pais e parentes dos noivos convidados iam chegando. Cumprimentavam a gente, com muita formalidade, pois eu era a professora, uma figura importante para todos.
A mesa era grande, coberta com uma toalha vermelha muito alegre, que dava uma nota bem alegre e festiva ao lugar sombreado. Os assados cheiravam bem e atiçavam o apetite. O almoço devia ser servido até o meio dia, para termos tempo de chegar à cidade, para o casamento, que seria às quatro horas da tarde. Mas, eu vi que ninguém tinha pressa, só eu é que estava preocupada com as horas.
Serviram a mesa, pratos e mais pratos; saladas em bacias de alumínio, macarronadas, carnes, frangos aos montes e, uma bela leitoa assada com farofa. Os brindes, copos e mais copos de vinho e, as galhofas e as piadas para os noivos, não terminavam e, também não terminavam nunca de
comer, com isso, a hora ia passando. Quando deram fim do almoço, foi uma debandada geral em busca dos cavalos que estavam nas cocheiras e nos ranchos perto dali. Os que ficaram, os mais velhos e empregados da fazenda, iam colocar em ordem o terreiro para à noite, onde haveria o baile tradicional.

Era uma família de muitos filhos, netos e demais parentes, que formavam quase uma centena deles. A noiva e o noivo foram à frente da cavalgada, e, ninguém podia atrasar-se na estrada, pois estávamos em cima da hora, principalmente a noiva, que ainda ia para a casa da costureira para vestir-se; tinha que ter tempo suficiente para isso e, ir para a igreja.

A algazarra era grande, uns caçoavam com os outros, naquele fala caipira de um italiano abrasileirado. Os pais com os filhos no colo ou nas garupas, as mães com os nenés seguiam com toda habilidade, comum desembaraço, que eu me espantava, em selas. Sentadas de lado no cilhão*, segurando firme as rédeas, com muita postura, apesar do filho no colo.
Como já disse, chegamos em cima da hora. Debandaram todos. A noiva foi para a casa da costureira, que, naturalmente, já estava esperando e, o noivo, foi vestir-se também em casa de amigos. Os demais ficaram esperando na igreja. Eu fui para minha casa, a fim de arrumar-me para assistir a cerimônia. Mas, quando cheguei, já havia terminado e, os noivos, já estavam saindo da igreja, para irem a uma confeitaria tomar refrescos e comer, naturalmente, uns doces da cidade, pois os do casamento haviam ficado para o fim da festa, que seria junto com o tradicional baile, tocado à sanfona, violas e, os roceiros cantores, na tulha do terreiro do café, nesta altura, já toda enfeitada de bandeiras vermelhas, amarelas, numa fantasia louca de cores.

* cilha - cinta larga, de couro ou de tecido reforçado, que cinge a
barriga das cavalgaduras para apertar a sela ou a carga

terça-feira, 20 de maio de 2014

Escola de Sant'Anna


As minhas caminhadas eram nas manhãs ensolaradas, quase sempre. 
Em uma dessas manhãs, toquei o cavalo displicente, olhando a estrada longe, o cheiro do capim gordura entrava pelas narinas da gente, com a aragem fresca a riçar os cabelos (que eu usava soltos por debaixo do chapéu de feltro - um Panamá de abas largas). Os passos do animal ressoando nas pedrinhas que escapavam rolando pela estrada era o único que se ouvia de humano, pois os passarinhos fugiam com o barulho da marcha dos cascos batendo forte.
Era uma estrada muito sinuosa e muito bonita. Descortinava-se ao longe de um lago, as árvores gigantes; os paus de coração de negro, roliços, vetustos* guardas da mata; os paus de alho e as floridas quaresmeiras, roxas, rosas, uma verdadeira festa de cores.
Meus olhos percorriam e pesquisavam tudo, comparando, do outro lado, um campo de aviação, que tinha a vegetação baixa da guanxuma ou das vassourinhas do campo. Atravessava a boca da serra, lugar silencioso, úmido pela cobertura das árvores cerradas de lado a lado da estrada, e, de vez em quando, um pássaro, talvez um anu, ou um gaviãozinho preguiçoso, fazia ruído com seu voejar de galho em galho. Ali era como um templo do silêncio, da meditação.
Assim que terminava a passagem da serra, tudo ficava iluminado pelo sol, que até então ficara oculto pelas ramas e árvores. Lá embaixo corria um riozinho muito tranquilo, entre as pedras que brilhavam a luz do sol.

A uma distância parei, pois o cavalo precisava beber – já andara hora e meia no sol ardente da manhã. Ouvindo o chiar da água a escorrer pela boca do cavalo, não notei de pronto um veadinho, um Bambi, elegante animalzinho parado a me olhar e ao cavalo. Ele estava logo adiante de nós, a se dessedentar** na fresca água que corria.

Logo que o cavalo acabou de beber, fazendo ruído, resfolegando de contente, o veadinho assustado deu um salto, e, subiu o morro acima com muita agilidade. Fiquei olhando a beleza que a natureza proporciona aos olhos humanos, e que, só raramente, o homem pode apreciar.

Já eram dez horas, eu tinha que abrir a escola, porque os alunos, nessa hora, já estariam a caminho dela. E toquei o animal, que por sinal, tinha o nome de “Paquera”, mas que nunca paquerou coisa nenhuma. Era lento e, só com um chicotinho que eu carregava, para afugentar as moscas, e que, de leve batia no seu pescoço, fazia despertá-lo e resolvia adiantar mais os passos.

O dono do sítio, Sr. José, caçoava comigo, que não sabia como é que eu chegava lá na fazenda com aquele cavalo... eu brincava, também respondendo: “– Devagar se vai ao longe...” Uma tarde de sábado, ele quis que eu trouxesse o alazão, cavalo dele, esperto. Eu já havia experimentado o animal logo que cheguei, mas não tinha saído pela estrada.


Ele falou-me:

– Quer ir com o meu cavalo para ver a diferença do andar e com isso chegar na cidade mais cedo?

– Não tenho pressa e pode o animal estranhar o cavaleiro, a amazona, pois tem conhecimento da montaria.

– Vai sem medo, mas não bata com o chicote, que ele se atira para frente e, se não for esperta, é capaz de cair... só isso que recomendo.


Eu quis me fazer de corajosa, aceitei a oferta com tanto receio do cavalo, que ia me carregar por quase três horas de estrada.

Tudo bem. Fui com cuidado de não ameaçar o cavalo com chicote, nem por pensamento.
A viagem correu que foi uma beleza, rápida. Ganhei mais de meia hora do caminho, com a leveza do animal, com sua obediência nas rédeas, e, eu sonhava em ter igual.


Ao chegar, tomei cuidado não entrando na cidade pelas ruas mais movimentadas, para evitar que ele se assustasse, mas ao subir a rua de casa, a Tiradentes, saía nessa hora, os alunos do grupo escolar, e eu, para apressar, bati de leve o chicote no seu pescoço. Não foi a batida que assustou o cavalo, foi a sombra do chicote que levantei.  Ele assustou, deu um pulo e, disparou comigo morro acima, parecia um filme de cowboy. Só parou quando puxei as rédeas no portão de casa. Dei um suspiro de alívio, pois minha sela americana não tinha muito apoio para uma cavalgadura dessa.

Os de casa correram a janela, com o ruído do galope na rua, que ainda naquele tempo não era asfaltada. Meu tio tirou os arreios, deu-lhe água e levou-o para o pasto, ali perto do Carlos Januazzi. Elogiou o cavalo alazão, vermelho, novo, esperto, tão esperto, que no outro dia, quando fomos tratá-lo, levando milho, água etc., ele não estava mais lá, pegou a estrada de volta para o sítio.


Foi uma das graças que o dono fez, sabendo que o cavalo voltava (fugia) para casa, de qualquer distância...



* vetusto - de idade muito avançada; antigo, velho. Provindo de época remota; antigo. Danificado ou deteriorado pelo tempo

** dessedentar - saciar a sede

quarta-feira, 14 de maio de 2014

1920 – Formatura

Vó Maura está de vestido escuro, no meio, apoiada na cadeira.

Foi o tempo mais feliz e despreocupado de minha vida, que corria como um riacho sem catadupas* nem corredeiras, mansamente. Eu estudava no ginásio Municipal, chamava-se assim porque era subvencionado pela Municipalidade, pois o número de alunos era tão pequeno, que não dava para cobrir as despesas com os honorários dos professores, luz e outras. Minhas colegas, que me lembro, eram: a Mafalda Felipe; a Fidalma Lombardi, a Alayde Rielli e muitas outras. Os moços eram: os Aliveiras, Urias, Manoel e Totz; um Rielli, Américo, o Marcos, um sobrinho do Monsenhor Manzini; o Barbosa; o Plínio Godoy e mais alguns que me esqueci o nome agora. Não chegava a cinquenta, o número de alunos. Eu levava muito a sério, mesmo sabendo que o meu estudo era apenas o preparatório, pois o papai não tinha condições de me mandar estudar fora, com um miserável ordenado de Secretário Municipal, e, uma família de seis pessoas para sustentar.

Naquele tempo, as mulheres somente faziam seu crochê, seus bordados, que não rendiam muito no orçamento familiar. As professoras, as parteiras, eram as únicas que trabalhavam cada uma ganhando uma miséria de ordenado. As professoras, duzentos e cinquenta mil réis e, as parteiras, dez ou vinte mil réis, por criança que aparavam. O jeito era economizar na casa, fazendo todo o serviço sem pagar nada para fora. Torrar café; lavar a roupa; passar a ferro, mesmo de brasa; criar galinhas, patos, gansos, marrecos. Todas essas aves havia em casa, quando o quintal comportava a criação dos mesmos. Papai comprava meio capado** no sítio e, mamãe, vovó e minhas tias, ajudavam a cortar o toucinho, fritar as carnes, que colocavam em latas, cobrindo de gordura, e, por uns tempos, comia-se linguiça, até chouriços com sangue, bem temperados, como papai gostava de comer. Nós não éramos abastados, mas o que papai ganhava, dava para vivermos sem apertos, isso até certo tempo, que eu me lembro, da minha infância. Mamãe fazia os vestidos, vovó fazia os ternos do meu irmão Mário, dos primos e demais parentes. Quando moça, vovó costurava para fora, fazia enxovais de casamento e, para meninas que iam para os colégios de Amparo.
Minhas tias, Luiza e Adelaide, eram prestimosas, sempre bem arrumadinhas e faziam também de tudo em casa. Foram elas que ajudaram mamãe a cuidar de nós, crianças, pois meu avô, Braz Blotta, morreu deixando-as com menos de dez anos cada uma.

Eu estudava para angariar conhecimentos de línguas francesa e inglesa, que eu gostava muito. Em português, eu aproveitei bastante os professores bons que tive durante meu curso no Grupo Escolar, que era muito bem ensinado, tanto que serviu para acompanhar minhas filhas no ginásio atual. Isso depois de quase trinta anos ou mais e, elas ganharam boas notas a minha custa, dos meus conhecimentos de português, isso eu sei, principalmente nas composições e redações. Também lecionei, uns anos, nos bairros de Serra Negra. Muita gente, mais antiga, que eram os moços, como eu, naquela época, devem lembrar-se da professora que saía a cavalo todas as manhãs, quer chovesse ou não, e andava, duas horas ou mais, até chegar na fazenda, no alto da Serra de Cima, divisa de Amparo, Monte Alegre ou de Socorro, não sei ao certo. Ali ficava a semana inteira, só voltava aos sábados para a cidade. Lecionei também em Três Barras, só durante um ano e, no ano seguinte, com Arminda Brusquini, que foi nomeada pelo Estado. Com meus alunos, derrubei paredes para alargar a classe, pois a outra sala ficou para o Estado. Fiquei com 20 e poucos alunos, e, ela, com os alunos de 8 a 11 anos, como era permitido pelo Estado naquela época. Era uma vida meio perigosa para duas moças que, sozinhas, enfrentavam a estrada de terra e, sem o mínimo conforto na escola que, nem privada tinha, nem água encanada, nada afinal! Não havia outro meio de condução, a não ser o cavalo ou a charrete e, quando comecei, ia a pé mesmo, acompanhada pela Sebastiana, uma mulherzinha muito boa e trabalhadeira, que apareceu em Serra Negra, lá pelos anos de 1922. Nós a conhecemos fazendo limpeza em quintais, lavando roupas e olhando crianças. Era muito prestativa, me acompanhou por uns vinte e poucos dias a pé, quando fui fazer a matrícula dos alunos, enquanto papai estava tratando de arrumar uma condução para mim. Não havia ônibus, era só de trole ou de charrete que se viajava lá por aquelas bandas.

Deixei de lecionar, quando fui convidada para substituir no Grupo Escolar, onde fiquei como interina, durante meses até me casar. Isso foi no ano de 1925. Minha recordação de meus 15, 16, 17 e até 18 anos, são boas, graças ao meu espírito esportivo. Dava-me bem com todas as moças, quer amigas íntimas ou não e com os rapazes também.

* catadupa - grande queda d’água; catarata. grande quantidade
** capado - animal, especialmente o porco, castrado para engorda

quinta-feira, 8 de maio de 2014

A agitada vida cultural da minha cidade



Os teatros e os cinemas do meu tempo deixaram também ótimas recordações. O Teatro Municipal, situado na esquina da rua José Bonifácio com Saldanha Marinho, era um edifício antigo, de construção severa. Era muito grande.  A plateia acomodava bem umas cem pessoas, com camarotes bem folgados, de onde assisti muitas peças teatrais com meus pais. Havia também a geral, com bancadas, que nos ensaios das comédias e peças, nós, meninas do catecismo, ensaiadas por dona Eliza e dona Carminha, sua filha, ficávamos brincando. Ali, muitos anos atrás, eram levados também muitos dramas e comédias, pelas senhoritas e moças da cidade, como minhas tias Luiza e Adelaide, a Maria de Oliveira e outras, cujo nome não me recordo. Os rapazes e senhores eram o Manoel de Oliveira, o Ezequias Marques, o Lola, o Frederico Domingues e outros amadores, com os quais nos divertiam com seus trabalhos artísticos.

Mas, numa noite de muito movimento, teatro cheio, com a peça no meio, começou um incêndio que não teve proporções mais dramáticas, nem feridos graves, porque deram logo o alarme. Mas, a correria foi grande e assustadora, com muitos desmaios, gritos e tombos, por parte das senhoras, que acabaram perdendo as bolsas, sapatos e luvas. Eu não estava, naturalmente, no teatro, mas sozinha, porque mamãe tinha dado luz a um menino há poucos dias e, meus pais não foram. A cidade ficou em polvorosa, devido aos boatos que corriam de imediato. Minha avó, preocupada, quis ir ver o que aconteceu. Quando chegou, minha tia Luiza estava toda despenteada e, minha tia Adelaide, com o vestido todo molhado, pois ajudou a jogar água nos bastidores, apesar do incêndio ter começado no porão do teatro. A fumaça foi maior que as chamas, que só chegaram a enegrecer as paredes, mas não queimaram os bastidores, nem o palco. No outro dia é que fomos saber o que havia sido queimado, dos prejuízos e do que havia sido salvo pelas pessoas que acudiram logo e que estavam mais próximas do palco.

Esse teatro foi, por muitos anos, a atração dos serranos, pois não havia outro, a não ser um salão onde o Átila passava filmes mudos e na maioria franceses, de Max Linder e outros atores cômicos. Era no largo da Matriz, onde mais tarde, foi o club Democrata. Alí, também, dancei muito com os rapazes do meu tempo, o Marino Ricci, que valsava muito bem, o Américo Scaramelli, o Renato Perondini, o Santini Mattedi, o Rodolfo Marchi e, muitos outros bons dançarinos, tendo como mestre-sala, o Giacomino, que residiu muitos anos em Serra Negra. Os cinemas bons, como o Joly e o Central, se desafiavam em trazer filmes da época, modernos. Foi o tempo áureo do cinema, dos filmes franceses, italianos e americanos. Fitas em série, de Pearl White – “O Cavaleiro Fantasma”, Judex, Fantomas, Ravengar e dezenas deles, um melhor que o outro. Havia domingo que não se sabia em qual cinema, ou melhor, qual filme assistir, tal era a competição.

quarta-feira, 7 de maio de 2014

Mataram o Manoel


Nos tempos remotos de minha infância, ouvia minhas tias cantarem modinhas de amor. Tinha a “Adeus Emilia”, que minha avó não gostava, porque achava que era maliciosa, sem graça alguma. Mas a música, era bonita e tinha embalo que encatava os ouvidos. Era agradável. A “Rosa Branca”, “Beijos Loucos”, também, eram modinhas de trovadores do nordeste de Minas, todas muito bonitas, as quais eu ouvia e aprendia logo, cantando com elas e as amigas que vinham em casa, a Vica Godoy e a Laura Nascimento, que era prima da minha mãe e tias. O divertimento melhor era o teatro, que também tomava parte nas peças, dramas, dramalhões daquele tempo, que fazia chorar até frades de pedra. Também algumas comédias bem boazinhas.

Quem trabalhava também nelas eram os rapazes e senhoras, tais como: o Lola, Frederico Domingues, Manoel de Oliveira, meu cabeleireiro, naquele tempo. Ele era do barbeiro que fazia a papai e cortava o cabelo de meu irmão. Eu gostava do Manoel. Numa das peças de teatro, muito comovente, eu ia porque fazia questão de ver minhas tias no palco. O Manoel tinha que levar um tiro e cair ensanguentado. Daí é que foi o negócio, porque ninguém esperava eu abrir um berreiro, achando que mataram o Manoel! Foi preciso que me retirassem do teatro e, no outro dia, o Manoel foi em casa me consolar.

O teatro incendiou-se numa noite de gala. Senhoras desmaiaram, moças atropelavam-se escadas abaixo e, senhoras gritavam para acalmar, foi um pânico geral. Os comentários, no dia seguinte, foram os mais diferentes possíveis. Quem ficou de fora do teatro, apreciou o atropelo geral do povo e a gritaria. Uns torceram os pés, outros rasgaram roupas, vestidos, bolsas perdidas, luvas e até enchimentos de cabelo foram encontrados no meio das cadeiras e camarotes. Ficou ainda, lá na esquina da rua José Bonifácio, o casarão do velho teatro, que tanto serviu a população em diversões.

terça-feira, 6 de maio de 2014

Tremor de Terra


Lá pelos ano de 1921, a madrugada era alta, ainda muito escuro, pois olhei pela vidraça e não vi sinal de nascer o sol. Acordei naturalmente, sem ter ouvido ruído algum, que, por acaso, me acordasse. Minutos depois o relógio da Matriz bateu quatro horas. Sentada na cama, não tive vontade de continuar a dormir, o sono fugira e eu não queria deitar-me. O que será que estava para acontecer comigo? Levantei o braço para arrumar o abajur, que dava com a luz nos meus olhos, mas parei no meio, pois, ouvi um ruído diferente, que vinha do lado de fora, da rua, do céu, ou sei lá de onde vinha, não consegui distinguir, aumentava de uma forma que parecia estar em cima de casa, de todas as casas.

Se mil carroças estivessem passando numa pedreira, não faria tanto ruído assim. Comecei a tremer. Ao mesmo que esse ruído, esse tropel de mil cavalos correndo, galopando, a casa tremeu inteira, por uns quatro segundos apenas. Apenas quatro segundos e o povo já estava nas ruas, indagando uns aos outros o que poderia ser. Um abalo sísmico, um tremor de terra? Os mais entendidos, os italianos, naturalmente, já enfronhados*, já tinham conhecimento em suas terras, foram os mais apavorados. Podia repetir e, com mais violência. Ficamos alarmados e a espera angustiante, era de matar a gente. Isso ocorreu numa madrugada de 27 de fevereiro de 1921.

Não se falou noutra coisa, senão no susto e na preocupação do que podia acontecer, pois chegou a tricar paredes, tremeu vidraças, sacudiu móveis. Foi no Estado de São Paulo todo. Os jornais deram pormenores e os prognósticos. Um acomodamento de terra. Foi um bulício** por semanas e discussões com os mais entendidos no assunto. A cidade nunca teve tanto movimento nas ruas, pois, à noite, reuniam-se nas esquinas para os comentários e, talvez, também um pouco de receio de ficaram em casa. Eu digo e confesso com franqueza, passei noites em claro depois daquele dia. O tropel macabro das carroças rolando sobre pedras da ladeira abaixo. Minha impressão é que ia desmoronar em cima das casas. E vovó, muito calma dizia: dorme menina, que isso náo vai se repetir. Mas o sono não vinha e eu, na escuridão da noite, parecia ouvir de novo o ruído infernal.

* enfronhar - colocar fronha. Informar-se, instruir-se - enfronhar-se num assunto.

** bulício - agitação de muita gente , burburinho.

segunda-feira, 5 de maio de 2014

Coisas de cidade do interior


Entrei para a escola, em 1912 e, o diretor ainda era o Dr. João de Toledo, que no ano seguinte, mudou-se para São Paulo, deixando o Prof. Frederico Domingues em seu lugar. Depois veio o Prof. Leonidas, com sua Sra. Calisa. Fiz o grupo escolar e depois o preparatório, que não deu em nada, pois não pude ir estudar em São Paulo, nem em Campinas, porque papai não podia pagar a pensão!

As moças e moços que estudavam fora, tinham parentes ou, podiam manter-se em pensões. Minha tia Eliza, que residia em São Paulo, negou-se a receber eu e a Lourdes e nem ofereceu a casa, ela disse que não queria meninas em casa, porque já tinha um sobrinho, o Sebastião, que criara e educara. Eu, então, me dediquei a aprender costura, bordado a máquina e outras atividades caseiras, pois serviço não faltava em casa, com tanta criança e, eu, ajudava o máximo que podia.

Em Serra Negra, como em todo interior, não era fácil para uma moça trabalhar sem ser professora, ou mesmo secretária, que naquele tempo não havia. Lecionei em escolas municipais uns tempos, mais tarde como substituta no Grupo Escolar, onde estive por muito tempo, até me casar. Meu irmão, de quem ainda não falei neste trecho, também fez o curso primário, no mesmo grupo que eu estudei. Mas, o Mário Toledo, era bastante inteligente, embora um pouco dispersivo. Gostava imensamente de pintura, mas era inconstante. Seus trabalhos em Serra Negra, sempre foram admirados por todos e, os comentários que se fazia a seu respeito, eram os mais elogiosos que se possa imaginar. Meu filho (Francisco Isolino Siqueira – Tio Xyko), em uma de suas visitas a Serra Negra, cidade onde nasceu, ainda conheceu um afresco feito pelo Tio Mario, conforme lembra-se muito bem, pois nessa época ele devia ter mais ou menos uns 9 a 10 anos, quando foi passar as férias na Fazenda em que era administrador, Sr. João Patricio, era pai de alunas do Hildebrando, em Amparo. Mas, para falar do meu irmão Mario, eu o farei em outra oportunidade. Serra Negra, diziam os antigos daquela época, “era bananeira que já deu cacho”. Mas, se tudo estacionou, foi por culpa daquela gente sem ideal, sem estrutura para o progresso. Nada faziam para melhorar a cidade. Nada que pretendiam ia para a frente, por falta, exclusivamente, de base e união. Foi o que sempre faltou, nas mínimas coisas, até mesmo no reconhecimento de seus antepassados, como é o caso de meu pai Manoel Carlos de Toledo, que tudo fez pela cidade, que nem era sua, mas a considerava como o sendo.

Triste lembrança


Vivi muitos dias alegres e com saúde. Mas vi meu irmão Maurino, de quatro anos, menino saudável, morrer de sarampo. Disseram que "recolheu", pois estava já bem melhor, sem febre e, saiu da cama para olhar pela janela a forte chuva de pedras, uma saraivada que cobria a calçada, deixando-a branca.
Era mesmo um bonito espetáculo para os olhos, mas não se esperava que ele descesse da caminha, que estava encostada na janela do quarto e corresse para a rua logo que a chuva passou. Ele viu outras crianças pegando pedrinhas de gelo na mão e quis fazer o mesmo. Eu gritei para a mamãe que ele havia saído do quarto, mas já era tarde. O menino, de camisolinha, estava com os pezinhos molhados pela enxurrada na calçada, quando foi levado para dentro e trocada sua roupa.
Mamãe lhe fez massagem com álcool na pernas e nos pés, deu-lhe chá quente, mas, estava ainda com tosse, essa aumentou e, veio a febre de novo. Daí por diante, nada mais fê-lo recuperar a saúde, falecendo dez dias depois de muito trabalho com médicos, de bronco pneumonia!