segunda-feira, 31 de março de 2014

Estrangeiros da minha terra


Foi na década de 1910 a 1920 que a minha querida Velhinha, ainda não tão velhinha, mas uma robusta senhora acarinhada por seus filhos e, também, pelos adotados, que não eram poucos, e eu, ainda uma criança, conheci muitos estrangeiros já radicados na minha querida terra.
Adotei Serra Negra como meu berço, pois vim com meus pais da querida Lindoia, com apenas dois anos. Lá, eles lecionavam na primeira escola mista. Lindoia era município de Serra Negra até poucos anos.

Dos estrangeiros da minha primeira infância, destaco três diferentes raças, pela convivência, pelos hábitos e pelas pessoas. O português Manuel do Porto, que era nosso vizinho, tinha a venda de secos e molhados em frente à Prefeitura Municipal, que foi Intendência, e, cujo intendente um deles foi o Sr. Marcolino Bueno de Godoy. Na venda do Manuel do Porto, eram dependurados nas portas, bacalhau, carne seca e, outras mercadorias. Mas o que as crianças mais apreciavam em suas artes, era ir beliscando o bacalhau e, aos pocuos, quando chegava à tarde, estava na quarta parte do pescado. Ele não se abalava com o furto, pois naquele tempo, o bacalhau era de baixo preço. Se fosse hoje, o negociante esconderia a quatro chaves, e, sairia correndo atrás das crianças.

Na segunda esquina da mesma rua, era o hotel do Sr. Manuel Vaz, casado com Dona Herculia Vichi. Ele era um senhor de muito respeito, um português muito educado, como só poderia ser um hoteleiro de gabarito. Tinha ele um filho, o Nelson, que trocava as letras quando falava depressa, o que causava risos às pessoas. Uma manhã fui na loja do Sr. Chedid e, lá estava o Nelson fazendo compras e dizia: “– Telo um taitel de linha peta pa minha mãe.” O sírio atrapalhado não entendia e perguntava: “– O que é que quer o menino?” E o Nelson já brabo repetia: “– Telo um taitel de linha peta pa minha mãe e adora.” Ficava pior a emenda do que o soneto. Eu tive que traduzir para o sírio, o tatibitate do menino.

Aconteceu também, anos depois, com minha sogra que lecionava a uma síria recém chegada e que recebia aulas de linguagem e escrita. A lição era sobre a Bandeira Brasileira. O falar difícil da Clarice, que trocava também as letras, lia muito entusiasmada o trecho: “– A binderra du Bresil é verte e marrela.” Mas logo ela estava perfeitamente dominando nosso idioma.
Outro tipo interessante era o bananeiro Antonio Citrangulo, que apregoava às suas bananas à moda italiana: “– Olhem o bananeiro, pode comer até as cascas, uma dúzia por um tostão!” Acabava vendendo todas e, dando a mais, as nanicas. A freguezia era grande e o bananeiro muito entusiasmado pelos fregueses.

Parecia ser, a nossa Querida Velhinha, muito procurada e, ser também, o reduto de estrangeiros que a procuravam e a adotavam como sua terra. Procuravam nela a paz, o trabalho e a saúde para a família.

Abençoada terra do meu afeto e da minha saudade...

quinta-feira, 27 de março de 2014

A grande geada


No ano de 1918, ocorreu a maior calamidade que jamais poderia acontecer em São Paulo e demais Estados do sul. Mas, principalmente, no Estado de São Paulo, onde foi a grande geada que arrasou plantações, queimando tudo: laranjais, hortas, jardins e, principalmente, os cafezais. Os cafezais foram os mais atingidos, por estarem plantados em lugares baixos e onde o frio e o gelo caiam com mais abundância demorando mais a derreter. Os fazendeiros tornaram-se pobres em apenas uma noite! Dormiram prevendo muito frio, mas não aquela geada arrasadora que os deixou apavorados. Uns se conformaram com a desgraça que não esperavam, caída do céu; outros, mais fracos, se suicidaram, diante de tamanha calamidade.

Recordo-me que acordei, como todas as manhãs, muito cedo, com minha avó que se dirigia a cozinha. Fazia um frio terrível, diferente do frio serrano que estávamos acostumadas. Não me agasalhei e tremia muito. Minha avó Marica mandou-me colocar um casaco, pois ela também estava com um xale nas costas, paletó de flanela, mas chinelos, porque coisa que ela não gostava era se agasalhar. Quando abrimos a porta da cozinha para pegar lenha no rancho, lá fora, estava tudo branco no jardim. A água não queria sair da torneira, estava congelada. Dos varais, cuja roupa ainda estava estendida, duras como papelão. Na cerca, que circundava o quintal, um do outro, montinhos de gelo que se desmanchavam como sal. A torneira do tanque, que sempre corria um filete de água, estava um fio de gelo como uma vela.
Era tudo lindo, pelo menos eu achava, pois era inédito à minha vista, mas já a minha avó, comentava que isso não era bom. Que a geada fraca queimava a *barroca, como iria ser então, com essa calamidade de frio e gelo?

Vieram notícias trágicas com essa desgraça no Estado todo. No Paraná foi uma tragédia e, também, em Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Nevou muito nesses estados e o povo estava alarmado.
Replantaram-se os cafezais e, daí, veio a alta do café, arroz e de todos os demais cereais que haviam sido perdidos.

*barroca - escavação causada por enxurrada; barranco. monte de barro.
foto: ilustrativa

quarta-feira, 26 de março de 2014

Gripe Espanhola

“Instituto Butantan. Produtos indicados na gripe espanhola. Soro hemostático, extrato suprarenal, extrato tonisular, soro normal de cavalo e soro camforado”. 2 de nov de 1918

Anos de 1918 e 1919

Você deve se lembrar de quando acabou a guerra em 1918 a alegria que houve no Brasil, e em nossa querida e sempre florida Serra Negra. Passeatas com muita música pelas ruas, muita alegria com a paz que parecia retornar no mundo todo.

Mas a alegria durou pouco, pois a tal da gripe espanhola, aqui para nós foi um flagelo total. Não houve casa que não ficasse com todos ou com uma parte na cama, muitos perderam seus parentes e amigos. Não havia médico na cidade, além do Dr. Firmino Cavenagni. Esse mesmo apanhou a gripe com pneumonia e, foi preciso esperar vir um médico do Rio de Janeiro, Dr. Paranhos, que tratava do Dr. Firmino e de todos os enfermos, que não eram poucos. Nessa ocasião, morreu tia Oscarlina, de vinte e quatro anos, deixando três filhos. Moça ainda, não resistiu a pneumonia dupla e, também, por falta de assistência médica. Era medicada sem que o médico pudesse visitá-la, pois estava no bairro das Três Barras e, o médico, não podia deixar outros doentes para socorrê-la. Foi uma tristeza, saber que tantos precisavam de médicos e remédios e que tudo faltava no momento mais cruciante (insuportável). Meu irmão ia a cavalo, debaixo para cima, levando as poções que o doutor receitava, não só para ela, mas para diversas pessoas. Muitos morreram nesse mesmo momento de angústia das famílias. No Rio de Janeiro, então, amontoavam os cadáveres nos hospitais, que eram removidos por caminhões para o cemitério, dia e noite. Esta foi a página mais triste de toda a nossa história. Faltar médicos na hora em que mais era necessária a sua presença na cidade.

Justamente, nesse ano, tinha-se programado um espetáculo teatral infantil, em benefício de uma obra assistencial, e que, seria assistido pelo nosso Bispo Diocesano, Dom Nery. As meninas que tomavam parte nos ensaios foram adoecendo de duas em duas, ou até mais, pois foi preciso interromper os ensaios por falta de comparsas. A peça era a Branca de Neve, de escritor campineiro, Benedito Otavio, sendo uma opereta muito bonita.

Foi proibido ajuntamentos, fecharam-se cinemas, o jardim público ficou deserto por uns meses, até passar a epidemia. Terminado os ensaios, levou-se a peça da Branca de Neve, que foi muito elogiada, pois a música era muito bonita e, os anõezinhos, que eram sete, eram meninas da sociedade, a Diva Brusquini e uma das Cristiani, a Isabel Faria, Dirce Godoy, Lila Oliveira, Odila Amaral e outras que não me vem a memória. Eu fiz o papel de caçador. Maria Luiza de príncipe, muito delicada e esplêndida no seu papel. A rainha era a Jupira Amaral. Conceição de Souza Quirino era o rei, muito vistoso na sua roupagem real. Havia também as pajens. Foi uma peça muito bem ensaiada, pela Carminha que tocava piano e, pelo Maestro Livio Benditis, que dirigia a orquestra. Aplaudiram muito e houve pedidos de bis. Na primeira apresentação, fomos muito elogiadas pelo Bispo Dom Nery.

E assim era nossa vida na querida velhinha que não era tão idosa, nem centenária, mas muito querida por todos os seus filhos.

foto: Reclames do Estadão

terça-feira, 25 de março de 2014

Primeira Guerra Mundial


A embarcação que transportou
os reservistas italianos de São Paulo para bordo
do navio "Regina Helena", de onde seguiriam
para a Europa, para lutar por sua pátria, em 1915

... e veio a guerra de 1914 a 1918.

Foi deflagrada na Europa, por motivo do atentado ao arquiduque Francisco Fernando da Áustria, assassinado por um terrorista sérvio. A Alemanha, Áustria, Rússia e Turquia provocaram a conflagração, entrando nela a França, Inglaterra, Itália, Bélgica e Espanha. Os Estados Unidos e o Brasil também tomaram parte até o fim da guerra, na qual pereceram milhares de soldados de todas as raças. Foram bombardeados pelos alemães alguns navios brasileiros: o Paraná, Macáu, Tijuca e Lapa. Do Brasil foram enviados aviadores-navais para os Estados Unidos.

Jovens de Serra Negra convocados para a Revolução

Da nossa pequena cidade, tão serena, os italianos e seus filhos estavam apavorados. Corria o boato que os moços da idade para o serviço militar, tinham que se apresentar como voluntários no consulado italiano. As mães e demais familiares desses moços choravam e pediam aos Santos protetores o seu auxílio contra a guerra. Em minha casa, a avó Marica e a Tia Oscarlina rezavam o terço todos os dias, invocando proteção.

Quatro anos dessa agonia. As notícias dos jornais de São Paulo e o nosso “O Serrano” (jornal de Serra Negra) traziam manchetes desoladoras sobre o que estava acontecendo na Europa. A França sendo invadida, a Bélgica e a Itália sob o domínio dos Tedescos. Depois de quatro anos de sofrimento moral de nossos compatriotas e aliados, a Itália conseguiu reconquistar as terras, e Gorizia foi retomada. Foi uma festa em Serra Negra pelos italianos ali radicados, mas com parentes na Europa. Festejava-se a vitória todos os anos, no dia 20 de setembro, com passeios e banda de música no jardim público da cidade.

A confraternização foi geral, quando terminou essa primeira guerra mundial do século vinte.

foto 1: Iba Mendes Pesquisa 
foto 2: arquivo de Carmen Momisso
 

segunda-feira, 24 de março de 2014

A árvore


Apto. na rua Major Solon, Cps - março 1984

Gosto de avistá-la pela janela
do meu apartamento que dá na praça.
É a mais bela, dentre outras árvores,
com seus ramos carregados de ninhos,
que trazem os ruidosos passarinhos,
que esvoaçam num rumor sem fim...

Não sei se deu flores ou frutos nos seus galhos.
Se elas, as flores, eram brancas ou amarelas.
Mas sei que a sua imagem é tão bela
entre seus companheiros de jardim
os Flamboaiãs*, com flores carmesins...

Mas ela, imponente, majestosa
traz consigo os seus ramos
abertos, para serem abrigo,
dos pobres e indefesos passarinhos.

CPS/JAN/1983
* flamboaiã (aport. de fr. flamboyant)

sexta-feira, 21 de março de 2014

Tempo e Lembranças do Tempo


As lembranças de meus antepassados e amigos, que residiram desde o começo do século em minha cidade, em convivência quase que diária com meus pais, é uma constante em meu pensamento. A cidade, sendo pequena, dava para ser constante o encontro com amigos e parentes, em uma prosa, ou mesmo em uma visita de compadres.
Os encontros hoje em dia, são em clubes, teatros, cinemas. Os jovens esportistas e as moças de colégios têm seus lugares preferidos, seus bares, boates e jardins onde se reúnem.

Mas era tão gostoso o ritual da visita ao compadre, mesmo sem motivo de grande importância.  O sorriso largo na chegada, o abraço apertado sem hipocrisia, o convite alegre e as palavras simples – identificação e satisfação do hospedeiro: “– Vamos chegando.” Estas simples palavras, diziam toda satisfação de quem nos recebia.
Havia, também, as visitas mais protocolares. O nascimento de um filho e aniversário de um dos parentes ou amigo. Daí já não era aquele papo informal, caseiro, sem cerimônia, “dos Maria dá cá o pito”, de um para outro fazendo seu cigarro de palha.
Tomava-se o cafezinho feito na hora, coado no coador de pano, chaleira no fogão de lenha que chalreava. Como toda cozinha grande, como eram as antigas, tinham grandes chaminés que, às vezes, pegava fogo e, era então a correria da dona da casa para chamar um pedreiro para limpar e apagar o fogo que bufava na chaminé. Às vezes, mas nem sempre, saía um bolinho fofinho, coberto de açúcar e canela. Minha avó e minha mãe, quando eram avisadas das visitas, tinham sempre o que oferecer. Lembro-me de uma vez, que chegou uma senhora em casa, com sua filha ou neta. Com não  podia tomar o café que eu trouxe com a bandeja e xícaras, bem arrumadinhas, aceitou um cálice de licor de figo, que eu fizera uns dias antes. Não sei se o licor ainda não estava no ponto, só sei que ela se atordoou e, na hora da saída, foi preciso que mamãe e a neta dela lhe dessem o braço, pois estava tonta. Ela saiu perdendo, porque os bolinhos de minha vó estavam esplendidos, com o café coado na hora.

Eu gostava de acompanhar meus pais, quando era convidada, mas preferia ir quando havia criança na casa, porque ficar sentada, quietinha numa cadeira, sem se mover, era difícil, mas diziam que era feio se mexer muito. Era um sacrifício. Foi o que aconteceu uma vez, que adormeci ou cochilei, e, quase ia caindo da cadeira, se meu padrinho Emilio Zelante, que estava de olho em mim, não me acudisse logo. Sua filha Aurea estava na fazenda com outros irmãos. Não era costume levar crianças em visitas de cerimônia, como até hoje, mas eram meus padrinhos de crismas e fomos convidados.

Minha avó pouco saía de casa. Ia à igreja aos domingos, de vez em quando na casa de um dos primos, ou dos filhos, como a família Zanoni, que eram parentes nossos, sendo o pai deles, irmão de minha avó Marica. Lembranças da Nhá Tudinha Brandão, que íamos quando convidadas para tomar um cafezinho, com broinhas, daquelas que o João Cafuringa vendia nas ruas e que eram deliciosas.
Tempo bom que a gente relembra sempre, com saudades das pessoas, que não se vê mais...

quarta-feira, 19 de março de 2014

Benção da Bandeira


O Tiro de Guerra de Serra Negra, minha cidade natal, teve como madrinha minha mãe, que doou a Bandeira Brasileira feita por suas mãos.

Lembro-me de papai recortando as estrelas douradas que vieram prontas da Loja da China, de São Paulo. O pano amarelo e a lã verde cortados e costurados em um grande bastidor (caixilho de madeira para manter preso o tecido para bordar) quadrado. E a legenda “Ordem e Progresso” em letras prateadas, bem dispostos na faixa do céu azul. Tudo feito com amor sadio de dois brasileiros conscientes de seus deveres de cidadãos.

A entrega solene foi na Praça Barão do Rio Branco, hoje Praça João Zelante, perante grande número de autoridades e populares; o prefeito Adriano Pinto da Fonseca, seus secretários, vereadores; o presidente Francisco Pinto da Cunha, os professores; o diretor do Grupo Escolar Leonidas de Oliveira; o delegado de polícia Raul Queiróz; as famílias dos reservistas; a Banda Humberto I. O padre Humberto Manzini, representando a Igreja Católica, benzeu a Bandeira.

Depois da entrega da Bandeira pela madrinha, Angela Blotta de Toledo, ao som do Hino Nacional, ouvido com muito respeito por todos, foi dado um viva à Bandeira Nacional. Seguiu-se o desfile dos reservistas comandado pelo Sargento Florismundo. Foi uma tarde cívica memorável na história de minha querida velhinha, hoje centenária e das recordações minhas.

foto ilustrativa


terça-feira, 18 de março de 2014

Serenata


Ao longe se ouvia o som de uma música suave e melodiosa, que embalava na madrugada friorenta, e vinha chegando mais perto. E eu acordada, já desperta, ficava a escutar. A valsa terminava bem perto de minha casa: na esquina da rua José Bonifácio, ouvia depois as vozes dos seresteiros que talvez já fossem se recolher, pois era madrugada. Amanhecia quase.

Era o conjunto do Nicolino Fatigatti, com seus companheiros: Casimiro Fiorentini, o pistonista Quinzote - inigualável, como ele só no piston, mais ninguém -, o Scaramelli na flauta, e mais um ou dois que agora não vem à lembrança. A “Valsa da Meia Noite”, “Branca”, “Ave Maria”, “Três da Madrugada”, “Luar do Sertão”, “Triste” eram as músicas mais preferidas para uma serenata, pois eram bem românticas e sentimentais. Eu e minha amiga Maria Luiza, que também tocava violino, adorávamos quando, no cinema, nas serenatas ou bailes, ouvíamos e dançávamos essas valsas.
Eu não levantava para ver, mais ficava trêmula de emoção em ouvir, vindo de longe os sons maviosos da serenata.

Na mesma rua em que morava, morava também o Nicolino com mãe e irmãos. Ele tinha alunos de música, e tocava em orquestras da cidade, o Quinzote, que era da família Campos, também fazia seus exercícios, ensaiava, andando pela sala de sua casa, tocando com perfeição. Sempre gostei de música e comecei a aprender violino com seu Ariovaldo, da mesma família Campos. Serra Negra, sempre foi uma terra previlegiada, pois seus filhos, os moços que conheci, quase todos tinham amor pela arte musical: Cassio Godoy, Nareu Tezzoni, tocavam de ouvido, com maestria o piano; Benedito Amaral, o Tico no violino era um mestre.

Que saudades de minha terra, das serenatas ouvidas com emoção nas madrugadas friorentas...

sábado, 15 de março de 2014

Brincadeiras de criança

Rua José Bonifácio - Serra Negra

“Se esta rua, se esta rua fosse minha,
Eu mandava, eu mandava ladrilhar,
com pedrinhas de brilhantes
para o meu, para o meu amor passar...”

Nas tardes mornas da minha cidade, que ainda não era uma velhinha centenária, nós, as meninas da minha rua José Bonifácio, saíamos a brincar de roda.
Eram as canções caboclas do nosso Brasil, de Minas Gerais, Bahia, e alguma traduzidas bem ou mal, mas dava para entender, pois o melhor era mesmo cantar...

Nossos pais, das janelas ou sentados nas cadeiras na calçada, conversavam com os vizinhos ou Padres, apreciando nossa brincadeira infantil: a cabracega, o chicote queimado, esconde-esconde, amarelinha, que falávamos até chegar no Céu...
As meninas eram muitas: Carminha, Maria Luiza, Ana Pinto, Alzira, Tita, Maricota e muitas outras.
As histórias se sucediam, pois todas queriam mostrar sua sabedoria em histórias do Saci, de fantasmas que deixavam a gente morrer de medo.

Os moradores da rua José Bonifácio, 1915 à 1918, todos antigos da cidade, eram os Godoi, os Marques, os Fiorentini, Oliveiras, Vergal, Patrícios, os Assís, Abreu, nós os Toledo, os Tozzine. Tinha a telefônica do Misaque, o jornal do Raul Marques. Na esquina, o Teatro Municiapal e ao lado o hospital, que aos domingos íamos visitar os doentes e pegar as frutas que o zelador e enfermeiro Joaquim nos deixava apanhar... como um cosmorama colorido, vejo repassar na minha recordação cheia de saudade, toda essa gente, antiga e amiga.

Veja minha boa velhinha, que nesse tempo ainda não eras ainda centenária, a minha rua não tinha bulício a não ser nas ruas que terminavam as aulas do Grupo Escolar e a algazarra das crianças que, concorreria, enchiam o ar silencioso de gritos e risos infantis.
Não havia armazéns, nem lojas, nem carros buzinando pela rua calma.
A nossa vida era então, como um “seio de Abraão”...

sexta-feira, 14 de março de 2014

Lamentos de Criança



Ouço, no silêncio da noite, um choro triste
É o filho do vizinho que chora, porque está doente
Pobre criancinha... não, ela não é pobre, porque tem um berço fofo e quente
Tem sua mãe ao lado, frascos de remédio e os seios túrgidos do leite de sua mãe

Pobre são aquelas que choram nas calçadas
Enxotadas na sua miséria pelas enchentes, pela fome, da falta dos pais e de uma mão que as acariciem
Aquelas que morreram sem conhecerem berços e nem tiveram tempo de chorar
Crianças que choram sem ter o pão ou outro alimento que lhes mate a fome
O leite, tão necessário para elas
Muitas nem sabem o que é um copo de leite, pois há muito lhes falta esse alimento

Mas, cavalos de corrida são alimentados todos os dias com baldes do leite que deveria ser enviado para os barracos e creches, para as favelas
Mas criança não rende para os bolsos dos magnatas, dos donos de cavalos de corrida e nem para os seus apostadores

O mundo vai muito bem, mas seria melhor que mudasse um pouco as pretensões dos homens de altas rendas, de negócios sofismáveis e pensassem mais nos lares pobres, com filhos pequeninos
Daí, a benção de Deus seria mais sentida nos mais carentes

Maura Toledo Siqueira – 1935
foto ilustrativa

quinta-feira, 13 de março de 2014

Era no ano de 1910


Publicado no jornal O Serrano, em 5.2.84


Bilhete à minha querida velhinha centenária, muito risonha e florida, Serra Negra
Maura Toledo Siqueira

Estava anunciada a passagem do Cometa Halley, pelos céus do Brasil, e, naturalmente os serranos estavam de sobreaviso pelos jornais. Para poder vê-lo era preciso levantar-se de madrugada, pois era rápida a sua passagem. Nós crianças, de cinco a seis anos de idade, queríamos assistir o belo espetáculo e conhecer o novo hóspede dos céus.
A minha querida velhinha, hoje centenária, era ainda uma jovem moça, bonita e muito modesta, deve recordar-se: – Havia sido inaugurado, a pouco, o jardim público, com seu repuxo, com seus peixinhos que foram dados mais tarde e a luz elétrica ainda faltava em diversas ruas.

Lembro-me dos lampiões a gás que Benedito (não o Nora) saia todas às noites a acender, e nós gostávamos de acompanhar os seus movimentos, de acender e apagar... a cidade tinha vida monótona, mas não deixava de ter suas atrações. Tinha a banda do José Pinto e as festas da igreja, que ainda não era reformada. Passeávamos pela redondeza da cidade, na caixa d’água em piqueniques familiares e também nas festas escolares. Mas voltemos ao nosso tão esperado visitante.

Os comentários eram assustadores. Diziam que ele viria, mas também e depois haveria guerra, fome, doenças e mil pragas o acompanhariam. Era a voz do povo. Chegado o dia, fomos embrulhados nos cobertores, eu e meu irmão Mário, que ainda muito sonolento não queria sair da cama. Mas papai teimou e fomos para o terraço do fundo da casa que era vizinha do Zacarias sapateiro, e da Margarida. Meu irmão tremia tanto que papai falou que não era de frio, mas de medo. Ficamos lá à espera por uma meia hora, mais ou menos, quando um clarão foi surgindo por detrás do morro do Fonseca. Eu sempre com os olhos arregalados para não perder nada do que ia aparecer no céu. Vovó, minhas tias, mamãe e papai olhavam admirados a majestade da estrela que já começava a aparecer. Quando ela surgiu de vez, acompanhada de sua cauda ou cabeleira, foi uma exclamação geral.

Jamais esquecerei do espetáculo daquela madrugada. Foi rápido o trajeto do cometa, que reaparecerá em 1985, e quem assistir sua passagem, assim como eu, verá o espetáculo mais deslumbrante da visão de uma estrela Natalina.

terça-feira, 11 de março de 2014

A vila Lindoya


Thermas de Lindoya –1918

Foi em Lindoya, vila do município de Serra Negra, situado no recôncavo, de mesmo nome, que cerca do lado norte a cidade e se estende por todo município onde eu nasci. Como toda criança esperada, fui muito adulada pelos pais, tios e parentes. Uma menina, depois que o primeiro filho foi homem, meu irmão Mário já com dois anos e meses.

Foi no dia 15 de março de 1905, ano da inauguração da luz elétrica e do jardim público em Serra Negra, cidade onde fui morar com meus pais aos dois anos de vida. E Lindoya (como se escrevia) ficava a apenas 24km de distância.
Havia uma estrada e um morro que chamavam de 7 Voltas, para ir ou voltar. Lindoya era uma vila, como tantas outras naquele começo de século, sem iluminação elétrica, com apenas duas ruas ou três, a de baixo, que era a rua da venda da Comadre Laura e do Compadre Faria, a de cima, que era do Coronel Estevão Franco, a que dava na ponte do Rio do Peixe e, a que subia para a capela ainda inacabada.

Quando nasci, lá se localizava o Cartório Civil onde fui registrada aos oito meses. Desleixo de alguém que foi me registrar mas não levou testemunhas e, daí, o papel ficou com os apontamentos, nomes dos meus pais etc, até que Papai indo procurar a certidão, viu que meu nome não constava no livro. Isso foi descoberto oito meses depois. Meu tio, que era meu padrinho, por estar em retiro no seminário, deu uma procuração para outros me batizarem, o Coronel Luiz Moreira e madrinha Guilhermina, no dia da Imaculada Conceição, 8 de dezembro do mesmo ano que nasci. Enfim, fui registrada em 1º de dezembro, portanto, oito meses depois com o nome de Maura e no batismo, Maura Conceição.

Em Lindoya papai era professor da Escola Mista, mamãe era da classe feminina e lecionaram lá por três anos. De lá ele foi nomeado Secretário da Prefeitura de Serra Negra, onde se aposentou com 35 anos de serviço público.

(Foto: Site da Prefeitura de Águas de Lindóia)

Dedicatória

E o livro já tinha até dedicatória, como segue:

À minha querida velhinha centenária, sempre risonha e florida Serra Negra – os meus parabéns e, votos de muito progresso e amor de seus filhos, que não a esquecem, embora distantes dos olhos, mas perto do coração.
Aos serranos, seus dirigentes, Sr. Prefeito e demais funcionários, os nossos parabéns pelo progresso intenso que ocorre na bela cidade serrana.
Aos que aí já viveram, saudosos voltam sempre para rever a bela velhinha já centenária, sempre risonha e florida, nas suas ruas e nas casas, parabéns!
Que o Cristo lá do alto abençoe a cidade, abençoe os nossos conterrâneos no seu permanente amor e carinho pela sua cidade.
Parabéns!

Maura Toledo Siqueira, Campinas, 23 de setembro de 1986.